domingo, 16 de agosto de 2009

Páginas excepcionais # 1 "a beleza..."

Pierre-Auguste Renoir

" Nesse dia, o Síndico sentia-se feliz com uma proeza mais rara do que as outras: a flor, branca e violácea, quase tinha as estrias de um lírio. Considerou-a voltando-a em todos os sentidos e, pousando-a aos seus pés:
- Deus - disse ele - é um grande pintor.
Cornélius Berg não respondeu. E o plácido velhote continuou:
- Deus é o pintor do universo.
Cornélius Berg fitava alternadamente a flor e o canal. Aquele espelho baço e plúmbeo apenas reflectia canteiros, muros de tijolos e algum estendal, mas o velho vagabundo cansado contemplava vagamente nele toda a sua vida. Revia certos traços fisionómicos que avistara nas suas longas viagens, o Oriente Sórdido, o Sul desbragado, expressões de avareza, de estupidez ou de ferocidade registadas sob tão brandos céus, os tugúrios miseráveis, as doenças venéreas, as brigas à facada à porta das tabernas, o rosto seco dos penhoristas e o belo corpo abundante do seu modelo, Frederica Gerritsdochter, deitado na mesa de anatomia da escola de medicina de Friburgo. Depois ocorreu-lhe uma lembrança. Em Constantinopla, onde pintara alguns retratos de Sultões para o embaixador das Províncias Unidas, tivera o ensejo de admirar um outro jardim de túlipas, orgulho e alegria de um paxá que confiava no pintor para imortalizar, na sua breve perfeição, o seu harém floral. Encerradas num pátio de mármore, dir-se-ia que as túlipas congregadas palpitavam e sussurravam no brilho ou na macieza das cores. Na bacia de um repuxo cantava um pássaro; os bicos dos ciprestes rompiam o céu palidamente azul. Mas o escravo que por ordem do seu senhor mostrava ao forasteiro aquelas maravilhas era zarolho, e sobre a vista que perdera há pouco amontoavam-se as moscas. Cornélius Berg suspirou longamente. Então, tirando os óculos:
- Deus é o pintor do universo.
E, com amargura, em voz baixa:
- Pena é, senhor Síndico, que Deus não se tenha limitado a pintar paisagens."

Excerto do Conto: A Tristeza de Cornélius Berg, in Marguerite Yourcenar, Contos Orientais

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