sexta-feira, 26 de março de 2010

domingo, 21 de março de 2010

sexta-feira, 19 de março de 2010

A era dos números

Não andei pela vida sozinho. Gostei das pessoas, detestei algumas ainda hoje detesto, as que se nutrem do suor e da morte de criaturas que para elas são apenas números.


Urbano Tavares Rodrigues.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Recordando feliz




Sons de uma paixão que me acompanha... vai fazer trinta e um anos.

terça-feira, 16 de março de 2010

Tarde


O que eu queria dizer-te nesta tarde
Nada tem de comum com as gaivotas.


Sophia de Mello B. Andresen
No Tempo Dividido
Caminho

Corylus avellana "contorta"




Magnólia Soulangeana


Camélia Branca


Magnólia «alba superba»


Magnólia Lennei


Camélia/ Japoneira


segunda-feira, 15 de março de 2010

medi o mundo, pesei o ouro



Pelas tuas mãos medi o mundo
E na balança pura dos teus ombros

Pesei o ouro do Sol
E a palidez da Lua.




Sophia de Mello B. Andresen
No tempo dividido
Caminho, 2003

domingo, 14 de março de 2010

Desconstruções # 24 "O olhar"

De tanto olhar o céu descobri nele uma nuvem com forma de igreja.

sábado, 13 de março de 2010

A casa



Veio-me uma saudade com sabor a noite
e pela casa ondulou preguiçoso o cheiro do pinhal.
Sentei-me à secretária e resolvi escrever-te.
A casa está plantada num rochedo, no cimo de um monte.
Parte das árvores que a rodeiam estão com as raízes no rio.
Do outro lado, as montanhas ondulam até os seus picos ao longe,
tocarem o céu.
A casa tem a forma de um navio,
em dias de nevoeiro balouça-se sobre o abismo
e no seu interior cheira a maresia.
Nesses dias lembram-se viagens por mares longínquos
e tragédias com fins ambicionados.
No Verão, o jardim cheira a flor de limoeiro
e as "caneleiras" informam o visitante
das viagens que a casa empreendeu.
Os cucos vêm em Março
e ouvem-se todos os dias até ao mês de Junho.
Os pardais vêm comer nas macieiras
e as crianças crescem descalças no jardim.
Nela o único luxo é o espaço,
que espera pacientemente as coisas desconhecidas
que a hão-de encher.
O tempo passa por ela devagar visto que é nova.
E por ela perpassa um frio angustiante
dos dias desconhecidos que a esperam.
O timoneiro sou eu.
Uma mulher que deseja a tua chegada.
Se viesses podíamos ver as estrelas até de manhã
e falar da cor do luar nas folhas prateadas dos carvalhos.
Talvez nos deitássemos sobre a relva
e desejássemos fazer outra vez os filhos que já temos.

P.M.

Galeria de retratos*2 Manuel Latas


Não sabíamos quando vinha, nem de onde vinha.
Sabíamos que viria, grande e troante como as forças da natureza,
com sol a pino, terra em brasa ou geada de dentes.
Aparecia ao fundo da recta
onde estava implantada a minha casa,
atravancando metade da estrada.
Vestia-se de serapilheira e apertava-se de arame.
Atrás dele vinha, sem falhar, uma procissão de crianças,
em frenética algazarra.
Vinha adornado de latas.
Ia-se aproximando do seu destino como um andor.
À medida que a procissão passava,
acorriam às portas e janelas, as mulheres, as crianças e os velhos.
Era o S’ Manuel das latas que vinha ao presigo.
Chegado, alapava-se no pátio da taberna da Deveza
e arredava a pequenada.
Xô. Xôôôôôôôô.
Repousado, iniciava o ritual da desprega das latas,
as de beber, as de comer, as das moedas…
E ali ficava todo o dia como um rochedo,
sempre a ser embatido por um mar de crianças,
que o admiravam,
que dele troçavam,
que o acompanhavam até aos limites das suas pernas.
Ao fim da tarde, regressava a si,
metia pelos montes
e ia desaparecendo ao longe, como a trovoada.
Um dia,
sem aviso,
foi adorado uma última vez pelas crianças.

P.M.

A Mãe

«- Vou ser breve - disse Lee.- Nós vivíamos numa cabana escura, no meio dum batatal, e o meu pai contava-me a história da minha mãe.
(…)
E Lee recuou no tempo.
- Devo começar por lhe dizer que os vossos caminhos de ferro do Oeste foram construídos por chineses, milhares de chineses que fizeram os aterros, colocaram as chulipas e assentaram as vias.
(…)
Depois de contratados, embarcavam-nos para a América e é muito provável que a história do meu pai seja um caso típico.
(…) Mas o meu pai era um rapaz recém-casado e estava ligado à mulher por um sentimento profundo, muito forte e muito belo. Ela também o amava perdidamente.
(…)
Estavam no mar há uma semana quando o meu pai descobriu a minha mãe. Vestia à homem e entrançara o cabelo.
(…)
A minha mãe pegou na enxerga e estendeu-a ao lado da do meu pai. Só podiam falar às escuras, com a boca colada ao ouvido. O meu pai estava zangado por ela ter desobedecido mas, ao mesmo tempo, sentia-se feliz.
(…)
- Como é que a sua mãe podia fazer um trabalho de homem?
Lee sorriu.
- O meu pai dizia que ela era forte e eu creio que uma mulher pode ser mais forte do que um homem quando está apaixonada. A mulher que ama é quase indestrutível.
(…)
- Houve uma coisa que a minha mãe não segredou ao meu pai durante a longa travessia e, como muitos deles sofriam horrivelmente de enjoo, ninguém estranhou que ela tivesse vómitos e náuseas.
- Não me diga que estava grávida! – exclamou Adam.
- Estava, sim – confirmou Lee -, mas ela não queria sobrecarregar o meu pai com mais preocupações.
(…) Em San Francisco, o gado foi carregado em vagões e as locomotivas rebocaram-no para as montanhas. Iam nivelar colinas e perfurar túneis. A minha mãe foi separada do meu pai e ele só tornou a vê-la no acampamento, instalado num planalto. O sítio era muito bonito, todo cheio de verdura e de flores, no meio das montanhas cobertas de neve. Foi nessa altura que ela informou o meu pai da minha existência.
As obras iniciaram-se. Os músculos das mulheres enrijecem como os dos homens, e a minha mãe tinha uma vontade de ferro. Pegou na pá e na picareta e fez o trabalho pelo qual lhe pagavam, o que deve ter sido horrível. Mas logo se encheram de medo quando começaram a pensar na maneira como nasceria a criança.
Adam disse:
- Porquê? Então ela não podia ir ter com o capataz, dizer-lhe que era mulher e que estava grávida? Com certeza que tratavam dela.
- Não – disse Lee. – Não está a compreender e a culpa é minha por não ter sido devidamente explícito. O gado humano era importado apenas com um único objectivo: o trabalho.
Assim, que a tarefa terminava, devolviam os sobreviventes para a China. Só os machos eram importados. Nada de fêmeas. O país não queria que tal gente se reproduzisse. Um homem uma mulher e um filho agarram-se á terra, constroem um lar de que é difícil arrancá-los, enquanto que um rebanho de homens inquietos, excitados e atormentados pela falta de mulheres irá para qualquer lado e, muito especialmente, para o lugar de onde veio. A minha mãe era a única mulher no meio daqueles brutos.
(…)
Para ficarem juntos, disseram que ela era o sobrinho do meu pai. Os meses passaram e, felizmente, a minha mãe não engordou demasiado. Continuava a cumprir a obrigação no meio do maior sofrimento. O meu pai auxiliava-a um pouco, desculpando-a: «O meu sobrinho é anda muito novo e franzino.» Mas não tinham planos nenhuns e não sabiam o que haviam de fazer.
Foi então que o meu pai imaginou um plano. Fugiriam para as altas montanhas… à beira de um lago…
(…)
- Espero que tenham conseguido o que queriam – disse Adam.
- Pois é. Quando o meu pai chegava a este ponto da narrativa eu pedia-lhe sempre: «Vê se chegas ao lago, vê se consegues lá chegar com a minha mãe e construir uma casa de troncos de abeto.» O meu pai, então, tornava-se muito chinês e respondia-me: «Há mais beleza na verdade, mesmo que seja uma verdade medonha. Os mendigos que contam histórias às portas da cidade mascaram tão bem a vida que ela acaba por parecer boa e fácil aos preguiçosos, aos teimosos e aos covardes, o que só pode concorrer para lhes agravar as enfermidades. Por esse processo, nada se aprende, nada se cura, e o coração nunca se abre.»
- Continue – disse Adam com irritação.
Lee levantou-se, dirigiu-se para a janela e acabou a história contemplando as estrelas. Lá fora, soprava o vento de Março.
- Certo dia desprendeu-se um pequeno rochedo e foi partir a perna do meu pai. Trataram-no e deram-lhe um trabalho de doente: endireitar pregos em cima duma pedra com um martelo.
Então, devido ao trabalho ou à angústia – não é isso o que interessa – a minha mãe sentiu as primeiras dores. Os homens, semi-loucos compreenderam e perderam a razão.
Um desejo ateou outro. Um crime ocultou o crime precedente, e todos os crimes cometidos contra esses homens famintos alimentaram uma enorme fogueira de loucura.
«O meu pai ouviu o grito: “Uma mulher!”, e compreendeu logo. Tentou correr, tornou a partir a perna e arrastou-se pela vereda que conduzia ao sítio onde se desenrolava aquela cena de horror.
Quando lá chegou o céu parecia oculto por uma espécie de tristeza e os homens de Cantão fugiam em silêncio para se esconderem, para esquecerem que os homens também podem ser aquilo.
A minha mãe estava estendida num monte de pedras. Já nem sequer tinha olhos para ver, mas mexia a boca e conseguiu articular as instruções necessárias. O meu pai arrancou-me da carne esfacelada da minha mãe com as próprias mãos. Ela morreu nessa tarde em cima do monte de pedras.
Adam respirava com dificuldade. Lee prosseguiu numa voz ritmada.
- Antes de odiar esses homens, fique sabendo isto que o meu pai acrescentava sempre no fim que nunca houve nenhuma criança que fosse tratada como eu. Todo o acampamento quis ser minha mãe. É belo, de uma beleza atroz. E, agora, boa noite. Já não posso falar mais.»

John Steinbeck
A Leste do Paraíso Vol. II,

Edição Livros do Brasil

sexta-feira, 12 de março de 2010

Lagos da Montanha

Na sombra da montanha
Dormem os lagos verdes e calmos.
E na tela da água o brilho do sol
Desdobra as cores do dia que nasce.

Gwilym Cowlyd
1827-1905
Rosa do Mundo 2001 poemas para o futuro.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Castelo de Paiva (9º Aniversário)


(Conversa imaginária de um Psicoterapeuta com a única testemunha que presenciou a queda da ponte de Entre-os-Rios)

Boa tarde, Fernanda.
Boa tarde, Senhor Doutor.
Como tem passado?
Tenho frio. E o pescoço. O pescoço rígido.
Quer sentar-se?
Quer falar sobre algo, em especial, hoje?
Sim, a noite.
A mesma?
Sim. A noite de quatro de Março de 2001.
Mas é dela que falamos sempre.
Sim. Essa é a noite em que me perdi. Preciso falar dela. Esgotá-la...exorcizá-la.
Talvez me encontre...
Como assim? Ninguém se perde na noite que conhece. Nem no espaço que é seu.
Ninguém se perde na morte que não lhe pertence.
Ai perde, perde, Doutor João.
Então, conte lá.
Bem, Doutor João, contar, contar, não sei. Nem posso. Só tenho imagens desgarradas.
A Fernanda estava à porta de casa. Era noite. Esperava o marido, que fora ao lado de Penafiel. Quer continuar?
Como posso continuar, Doutor João?
A minha memória só ouve os mil gritos que saíram do autocarro. Iluminado. Inclinado sobre o abismo.
E a queda, Doutor João. A queda. Aquele baque. Aquela escuridão que me entrou na alma.
Sabe, eu estendi os braços. Ergui-os. Inúteis. Fracos braços. Fraca alma. Não consegui parar o autocarro. E rezei! Se rezei…
Oiça, Fernanda, ninguém conseguia parar o autocarro. Nem a senhora. Nem nós todos. Nem a reza. Talvez, nem Deus.
Ó Senhor Doutor, rezei e corri. Corri até ao início da ponte. Não queria acreditar. Ainda não quero acreditar.
Quando lá cheguei era verdade. Metade da Ponte já lá não estava. A ponte que me viu nascer.
A ponte é como o sol. Pensamos que está lá para sempre, todas as manhãs.
E o autocarro engolido. Engolido, por aquela água em atropelo.
Senhor Doutor… já viu o tamanho de um autocarro?
Está a ver um autocarro?
Engolido. Nada à vista.
Os gritos. Os gritos estilhaçaram-me a alma.
Foi por isso, Doutor João, que eu não tive ânimo para segurar o autocarro.
Então, Fernanda. Acha possível segurar um autocarro em queda?
...não, senhor Doutor.
Mas eu quis tanto parar aquele autocarro. Salvar as crianças e as mães delas. Arrancar aqueles gritos do fundo da água. Eu ergui os braços, Senhor Doutor. Eu ergui-os. Eu empurrei o autocarro para o Céu. E Deus não o agarrou!
Ora, aí está, nem Deus pôde agarrá-lo...
Sabe, Senhor Doutor, nos dias que se seguiram houve muito barulho. Até no quintal de casa tinha gente. Fotógrafos. Televisões. Rádios.
Como aquela gente fala!
Eu só queria silêncio. Eu queria os meninos. Ai, a dor de perder os meninos, que nunca pude abraçar…
Diga-me, no Verão passado foi à esplanada sobre o Rio Douro?
Fui com a minha irmã e a minha filha.
E descontraiu-se? Brincou com a sua filha?
A minha irmã e a minha filha andaram de barco e nadaram no rio.
E a senhora?
Eu, senhor Doutor? Eu estou perdida naquele rio. É dentro dele que hei-de encontrar-me, quando arranjar coragem…
Conte-me um episódio da sua vida, nos últimos tempos, que a tenha deixado satisfeita.
Satisfeita. Satisfeita? Mesmo satisfeita?
Fui à feira, a Castelo de Paiva, e comprei rosas brancas. Trouxe um cesto de rosas brancas. Umas compradas e outras dadas pelas floristas, que já me conhecem.
- Aquela é a testemunha da Ponte.
E apontam-me!
Eram tantas, as rosas, e tão lindas, parecia que falavam comigo. Pareciam querer sossegar-me. Eram as almas dos meninos a sossegar-me. Fui deitá-las à água no dia 1 de Novembro.
Fique tranquila. Pronto… a sua filha como vai, agora que o pai se foi embora?
Vai bem.
Eu. Bem…, mais a minha irmã. Ela não deixa que a filha perceba que eu ando perdida.
Mas, a Fernanda não anda perdida. Anda apenas à procura de um caminho arejado, onde caiba esse acontecimento doloroso que veio ter consigo à porta.
No início do Verão tínhamos concordado em mudar de casa. Como andam os preparativos para a mudança?
A minha irmã já tratou de tudo. Ela e a minha filha já vão à casa nova.
E a Fernanda quando lá vai? Quando se muda?
Eu hei-de ir. Hei-de mudar-me, Doutor João.
Deixe que se calem os gritos dos meninos. Que a minha alma saia do rio.
Deixe o tempo enfraquecer a memória…
Hei-de ir, hei-de ir...

P.M.