segunda-feira, 31 de outubro de 2011

hoje eu completei...


Hoje eu completei 10 anos. Fabriquei um brinquedo com
palavras. Minha mãe gostou. É assim:
De noite o silêncio estica os lírios.

Manoel de Barros

gosto solitário



Do orvalho
Nunca esqueças
O branco gosto solitário.

Matsuo Bashô 1644-1694

sábado, 29 de outubro de 2011

as árvores


Uma árvore anda de aqui para ali sob a chuva,
com pressa, ante nós, derramando-se na cinza.
Leva um recado. Da chuva arranca vida
como um melro ante um jardim de fruta.
Quando a chuva cessa, detém-se a árvore.
Vislumbramo-la direita, quieta em noites claras,
à espera, como nós, do instante
em que flocos de neve floresçam no espaço.


Tomas Tranströmer




...as árvores desassossegadas como em toda a parte...
com a chegada da noite... 
o meu marido...
a largar as chaves na mesinha de laca sem atenção ao verniz,
o desassossego das árvores na voz dele,
um agitar de folhas, a mesma angústia nos ramos...

António Lobo Antunes
Eu Hei-de Amar Uma Pedra

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Fogo preso


Quando se ateia em nós um fogo preso,
O corpo a corpo em que ele vai girando
Faz o meu corpo arder no teu aceso
E nos calcina e assim nos vai matando
Essa luz repentina até perder alento,
E então é quando
A sombra se ilumina,
E é tudo esquecimento, tão violento e brando.
Sacode a luz o nosso ser surpreso
E devastados nós vamos a seu mando,
Nessa prisão o mundo perde o peso
E em fogo preso à noite as chamas vão pairando
E vão-se libertando
Fogo e contentamento,
A revoar num bando
De beijos tão sem tento
Que não sabemos quando
São fogo, ou água, ou vento
A revoar num bando
De beijos tão sem tento,
Que perdem o comando
Do próprio esquecimento


Vasco Graça Moura

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

vento sem abrigo

Sunshine lovers II - Elisabete da Silva

À noite como deve sentir-se solitário o vento
Quando todos apagam a luz
E quem possui um abrigo
Fecha a janela e vai dormir.

Ao meio-dia, como deve sentir-se imponente o vento
Ao pisar em incorpórea música,
Corrigindo erros do firmamento
E limpando a cena.

Pela manhã, como deve sentir-se poderoso o vento
Ao deter-se em mil auroras,
Desposando cada uma, rejeitando todas
E voando para seu esguio templo, depois.

Emily Dickinson
In Poemas Escolhidos

terça-feira, 25 de outubro de 2011

secos campos


Doente em viagem
sonho em secos campos
Ir-me enveredar"

Matsuo Bashô, 1694

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

encontrar-me...


«A partir de hoje, se alguém me quiser encontrar, procure-me entre o riso e a paixão.»

Natália Correia

A noiva sitiada




Para a igreja vos arranca
um animado e ruidoso murmurar.
na ordenada ala o sol se entorna.
Os olhares que sitiam a noiva
apalpam como mãos suas ancas seus seios.
Como a roupa de dentro colada à sua pele
cercam-na bloqueiam toda a possível greta
levantam-lhe a camisa
como se atormentando
ou lhe solicitando a escondida
fenda.


Fernando Pessoa.

A propósito do terramoto na Turquia.


“A casa caiu. A alegria toda foi embora”.
Menina Brasiliera  durante as cheias de Abril de 2010

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Um melro construido de memória.


O amarelo do bico tráz a plumagem negra,
azeviche
Já não se diz azeviche
Dizia o meu avô, se não o dissesse o melro não ficava completo
Azeviche, Substância mineral muito negra e luzidia
O melro, os olhos redondos e vigilantes
Dentro do olho um homem com uma espingarda
E no ouvido um som seco
Um estoiro-eco que faz as pernas nervosas,
aos saltos
O melro a agir como se me roubasse as amoras
Sem ter meio de entender que a amoreira plantei-a para ele lá ir comê-las
No pretexto do seu amarelo e azeviche
E de ouvi-lo
A sua glória. Onde luta pelo direito de Mozart na flauta mágica.
E ele vê-me e voa, noutra glória
Sou a dona das amoras
Pareço-lhe o homem no fundo do seu olho
Eu, o melro e o azeviche, quantos mal-entendidos!

PM

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Poema de amor sem ser


Queria um poema de amor.
Mas não tenho as palavras.
Amor não serve
está em estado de roto
com muito rosa e purpurina.
Amor é uma palavra confundida
serve para docinho, filha e abobrinha.
Eu quero palavras como pedras
sal selvagem
grito de vento
silêncio de montanha
desejo que é dor
paixão que adoece....

PM

O ar que respiras



Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,
Sacode as aves que te levam o olhar,
Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.

Porque eu cheguei e é tempo de me veres,
Mesmo que os meus gestos te trespassem
De solidão e tu caias em poeira,
Mesmo que a minha voz queime o ar que tu respiras
E os teus olhos nunca mais possam olhar.

Sophia de M.B.A.

Par ser grande.


Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe
quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Ricardo Reis.