segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Profecia de ilusões *15 " anjos"

As aves são anjos em liberdade.

Desconstruções *20 "a Garça"


A garça faz patinagem artística sobre a água.

Desconstruções *19 "brincos de princesa"

Os brincos de princesa são um dote da natureza.

domingo, 29 de novembro de 2009

Fantasmas do Porto


«Se eu tivesse que destruir o Porto (com um ligeiro sopro, desses que despem as árvores e arrepiam as águas dos tanques), construía-o logo em memórias e em perdões variados. Figuras antigas, que eu quase esqueci, vinham depositar nas minhas mãos os seus tesouros de insolência e amor a ela vinculados. É muito difícil visitar os vivos. Muito difícil. Direi que do Porto tive a experiência mais molesta e nobre que nos pode acontecer: a experiência de um fantasma. Uma noite, no jardim, iluminado pelo branco clarão da luz pública, que aparecia por cima do muro como uma lua adereçada, saiu da sebe de hidrângeas uma pessoa de estatura pequena, vestida gravemente de azul escuro. Acompanhou-me durante alguns segundos, e depois apagou-se como um desenho duma folha de papel. Não inspirava medo, mas só uma impressão delicada, como se, ao materializar-se, cometesse um delito dedicado à terra que já abandonara. Ele disse: «Alguém entrou no jardim.» Mas sabia que não era gente viva. E, no entanto, algo das suas faculdades era-me familiar; uma inteligência de renúncia que já não era deste mundo, e, ao mesmo tempo, uma espécie de súplica que interpretei como uma chamada.

Desde aí o Porto tornou-se para mim mais do que um lugar, mais do que uma cidade acidentada e escura. Era um passeio de amigos abandonados ao secreto desgosto de ter perdido a ocasião da confidência, o tempo da festa que é a sinceridade mútua. O Porto pareceu-me um campo de sombras incompletas na confiança e na partilha. Por muito precária que seja a minha interpretação do Porto, ela é animada pela impressão profunda dos seus meios para reconhecer o bem e o mal - meios extintos numa sólida abdicação da fé nos homens.

Talvez me engane. Talvez isto tudo seja efeito do nevoeiro que cria imagens e estados de espírito; além de dar às flores um suor de prata. Talvez. Mas sempre que vejo perto a multidão de conhecidos, a massa inquietante de gente conhecida, parece-me que eles vão morrer sem confissão. Não confessam jamais o amor nem o ódio; nem os gostos simples, nem os gostos ousados. Nem a heroicidade, nem a ternura do que é vão - da vida, em suma. E, um dia, entram num jardim, graças ao esforço imortal dos que repetem a forma humana, e acompanham uma pessoa viva durante dois segundos, pedindo atenção.

O Porto, cidade em que os fantasmas convivem com certo instante predestinado, é o preferido, sem cálculo e até sem paixão. Eu amo-o de modo um pouco perverso, como se ama a verdade. Hei-de ser um fantasma do Porto em tempo próprio, combatendo a minha imaterialidade para me aproximar das pessoas e dar-lhes a minha fé mal cumprida. Como eles fazem comigo, os fantasmas do Porto. Que tremenda forma de amor é exprimir-se humanamente quando o humano se abandonou para sempre! Como retribuir senão entregando ao mundo essa forma de conselho que dos espaços traz a sua melancolia? Como?»


Agustina Bessa-Luís in Dicionário Imperfeito, Guimarães Editores

Páginas excepcionais # 11 "a singularidade na madrugada"


Era o momento em que a noite se separa do dia, o mundo de baixo do mundo de cima. E talvez haja outras coisas que também se separam nesses momentos. É o último segundo em que a profundidade e a altura, a luz e a escuridão, tanto universal como humana, ainda se tocam, em que os que dormem despertam em sobressalto dos seus sonhos pesados e angustiantes, os doentes suspriam de alívio, porque sentem que o inferno da noite acabou e dará lugar a um sofrimento mais ordenado; a luz e a regularidade do dia revela e separa tudo que no caos obscuro da noite era um desejo convulsivo, uma ansiedade secreta, uma paixão delirante. Os caçadores e os animais selvagens gostam desse momento. Já não é noite, mais ainda não é dia. O perfume da floresta está tão vivo e selvagem nesse instante, como se todos os seres vivos começassem a despertar no grande dormitório do mundo, como se exalassem os seus segredos e suspiros maldosos, as plantas, os animais e também os seres humanos. Levanta-se o vento tão suavemente, como quando alguém acorda e solta um suspiro, recordando-se do mundo em que tinha nascido. (...)
A esta hora, os animais selvagens dirigem-se para as fontes. A noite ainda não acabou de todo, na floresta acontecem coisas, a caça grande e a vigilância que preenche a vida dos animais selvagens, ainda não terminou, o gato-bravo está alerta, o urso devora o último pedaço da sua presa, o veado em cio recorda-se dos momentos da paixão da noite de lua, pára no meio da clareira, onde o duelo do amor decorreu, orgulhoso e encharcado, levanta a cabeça ferida na luta e olha em redor, com olhos sérios e tristes, avermelhados de excitação, como quem se lembra para sempre da paixão. (...)
É o momento em que não apenas nas profundidades da floresta, mas também na obscuridade dos corações humanos acontece algo. Porque os corações humanos também têm as suas noites, cheios de emoções tão selvagens, como os impulsos da caça que assaltam o coração do veado ou do lobo. O Sonho, o desejo, a vaidade, o egoismo, a ira, lasciva do macho, a inveja, a vingança, essas paixões ocultam-se de tal modo na noite da alma humana, como o puma, o abutre e o chacal no deserto da noite do Oriente. Existem momentos em que já não é noite e ainda não é dia no coração humano, quando as feras saem dos esconderijos sombrios da alma, quando estremece no nosso coração e se transforma em movimento na nossa mão uma paixão que formamos e domesticámos em vão durante anos, às vezes, durante muito tempo....

Sándor Márai in "As Velas Ardem Até ao Fim".

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Páginas excepcionais # 10 "armadilhas da Infância"


«- Esta noite estás com um ar meditabundo - disse o meu pai, procurando conversa.
- É capaz de ser a humidade que dilata o cérebro. É o que diz o Barceló.
- Há-de ser mais qualquer coisa. Estás preocupado com alguma coisa, Daniel?
- Não. Estava só a pensar.
- Em quê?
- Na guerra.
O meu pai assentiu com ar sombrio e sorveu a sua sopa em silêncio. Era um homem reservado e, embora vivesse no passado, quase nunca o mencionava. Eu tinha crescido na convicção de que aquela lenta procissão do pós-guerra, um mundo de quietude, miséria e rancores velados, era tão natural como a água da torneira, e que aquela tristeza muda que sangrava pelas paredes da cidade ferida era o verdadeiro rosto da sua alma. Uma das armadilhas da infância é que não é preciso compreender para sentir.
Na altura em que a razão é capaz de compreender o sucedido, as feridas no coração já são demasiado profundas. Naquela noite primitiva de Verão, caminhando por aquele anoitecer escuro e traiçoeiro de Barcelona, não conseguia apagar do pensamento o relato de Clara à volta do desaparecimento do pai. No meu mundo, a morte era uma mão anónima e incompreensível, um vendedor a domicílio que levava mães, mendigos ou vizinhos nonagenários como se se tratasse de uma lotaria do inferno. A ideia de que a morte pudesse caminhar ao meu lado, com rosto humano e coração envenenado de ódio, envergando uniforme ou gabardina, que fizesse bicha no cinema, risse nos bares ou levasse as crianças a passear no parque da Ciudadela de manhã e à tarde fizesse desaparecer alguém nas masmorras do castelo de Montjuïc, ou numa vala comum sem nome nem cerimonial, não me entrava na cabeça. Dando voltas àqilo, ocorreu-me que talvez aquele universo de cartão-pedra que eu dava por bom não fosse mais que uma decoração. Naquele anos roubados, o fim da infância, como os comboios espanhóis, chegava quando chegava.»

Carlos Ruiz Zafón, in a "A Sombra do Vento"

A santidade


"A poesia é oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível. O amor é oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra mais. Mas a Santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias".


Sophia de Mello Breyner Andresen, in Contos Exemplares, Retrato de Mónica, Figueirinhas.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Páginas excepcionais # 9 "o testemunho"


«- Caguei-me - repetiu, e desta vez desfez-se em lágrimas.
(...)
- Não digas às crianças - pediu, a olhar-me da cama com o olho que ainda via.
- Não digo a ninguém - tranquilizei-o. - Direi que está a descansar.
- Não digas à Claire.
- Não digo a ninguém. não se preocupe com isso. Podia ter acontecido a qualquer pessoa. Esqueça o assunto e descanse o mais que puder.
Corri as persanas para obscurecer o quarto, saí e fechei a porta.
(...)
Voltei em bicos de pés ao quarto onde ele dormia, ainda a respirar, ainda vivo, ainda comigo - mais um revés desencadeado por aquele homem que eu conhecera interminavelmente como meu pai. Senti-me péssimo por causa da sua heróica e vã luta para se limpar antes de eu chegar à casa de banho, e da vergonha inerente, e da desgraça que ele próprio se considerava. No entanto, agora que terminara e o meu pai dormia profundamente, pensei que não podia ter pedido nada mais para mim próprio antes de ele morrer: isto também estava certo e era assim que devia ser.
Limpamos a merda do nosso pai porque ela tem de ser limpa, mas na esteira desse limpar tudo quanto nos resta para sentir é sentido como nunca antes foi. Também não era a primeira vez que compreendia isto: depois de contornarmos a repugnância, ignorarmos a náusea e mergulharmos para além dessas fobias fortificadas como tabus resta uma tremenda quantidade de vida para acarinharmos.
(...)
Agora que o trabalho estava feito, não poderia ser mais claro para mim o motivo por que isto estava certo e como devia ser. O património era, então, isso. E não porque limpar a porcaria fosse simbólico de qualquer outra coisa, porque não era; antes por não ser nada menos nem nada mais do que a realidade vivida que era.»

Philip Roth, in "Património"

Primeiras páginas II "Um Pequeno Deus Nocturno"

Nasci nesta casa e criei-me nela. Nunca saí. Ao entardecer encosto o corpo contra o cristal das janelas e contemplo o céu. Gosto de ver as labaredas altas, as nuvens a galope, e sobre elas os anjos, legiões deles, sacundindo as fagulhas dos cabelos, agitando as largas asas em chamas. É um espectáculo sempre idêntico. Todas as tardes, porém, venho até aqui e divirto-me e comovo-me com se o visse pela primeira vez. A semana passada Félix Ventura chegou mais cedo e surpreendeu-me a rir enquanto lá fora, no azul revolto, uma nuvem enorme corria em círculos, como um cão, tentando apagar o fogo que lhe abrasava a cauda.
«Ai, não posso crer! Tu ris?!»
Irritou-me o assombro da criatura. Senti medo mas não movi um músculo. O albino tirou os óculos escuros, guardou-os no bolso interior do casaco, despiu o casaco, lentamente, melancolicamente, e pendurou-o com cuidado nas costas de uma cadeira. Escolheu um disco de vinil e colocou-o no prato do velho gira-discos. Acalanto para Um Rio, de Dora, a Cigarra, cantora brasileira que, suponho, conheceu, alguma notoriedade nos anos setenta. »

José Eduardo Agualusa, in O Vendedor de Passados

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Primeira Página I "Os Rochedos de Tundavala"


Os olhos dele continham o céu do Planalto.
Na Huíla, Serra da Chela, Dezembro, quando o azul mais fere.
No olhos dela estavam gravadas suaves ondulações da estepe
mongol. Tons sobre o castanho.
Entremos primeiro no azul.


A minha vida se resume a uma larga e sinuosa curva para o amor.
Começando por um caminho longo até Moscovo.
Não vos contarei todos os detalhes dessa viagem. Houve outras, também importantes, houve mesmo muitas viagens. Mas essa primeira viagem em arco amplo e súbitos desvios demorou mais, começou na Huíla, Sul de Angola, quando fui parido.
Nasci no meio de rochedos. A casa, porém, era de adobe.
Casa de Adobe com rochedos à volta. Título de quadro?
Era muito duro fazer uma casa de pedra, como na aldeia de Trás-os -Montes onde o meu pai tinha nascido. A minha mãe era já de algumas gerações huilanas e nascera numa mais pequena que a nossa. Por isso se construiu a de adobe, quando casaram. Os dois, com a ajuda de um serviçal muíla, chamado Kanina, nome de soba grande, ergueram a moradia, usando o barro de uma baixa sempre húmida para fazerem blocos secos ao sol.

Pepetela, in O Planalto E A Estepe

Postulado


Eu quero uma tira de papel
do meu tamanho
um metro e sessenta
nele um poema
que grita
quando alguém passa
e grita em letras negras
a exigir o impossível
coragem cívica por exemplo
essa coragem que nehum animal possui
compaixão por exemplo
solidariedade em vez de rebanho
fazer nossos através de actos
esses conceitos.

Homem
animal que tem coragem cívica
Homem
animal que conhece a compaixão
Homem animal-palavra animal-conceito
Animal
que escreve poemas
poema
que pede impossíveis
a quem passa
urgentemente
irrefutavelmente
como se apregoasse
"Bebe Coca-Cola"

Hilde Domin, in antologia Estende a mão ao milagre. Cosmorama Edições.

A terceira asa


Trago uma esperança nova.
Tão nova como a primeira
luz que marca o amanhecer
da vida de cada homem.


Trago a sabedoria
das cores que dançam no ar,
mas que se reúnem,
cada qual no seu lugar,
quando é preciso fazer um arco-íris.


Trago a lição interminável
que dois amantes ensinam
quando se abraçam cantando
para a invenção do milagre.


Trago o milagre da vida
que lateja neste instante
no coração de uma criança
que acaba de nascer.

Chego no rastro de um pássaro
que atravessa a luz atlântica
com sua terceira asa
feita de canto e poesia,
que no tempo inventa o rumo
estrelado da utopia.


Thiago de Mello, poeta Brasileiro.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Fogo de artifício verde


Podes esperar no cais,
que para ti imaginaste.
Eu não voltarei.


Fugi da tua rua,
da tua cidade,
da falta de lar,
de ti.


A obssessão é só tua.
Eu já não sonho,
com fogo de artifício verde.
E a água
há muito tempo
que deixou de me queimar.


O meu rosto tem olhos,
boca, nariz
e maçãs salientes.
Está airoso,
e resplandece
na sabedoria da idade.


A alfazema e a madressilva
vivem no jardim com as abelhas,
E quem recolhe o mel selvagem
são as aves alegres que nele vadiam.


Não gosto de bonecas,
são brinquedos
de mulheres desequilibradas.
Rostos mortos.


Em comum contigo,
apenas,
aceitar o imponderável,
por lucidez, não por destino!


Não esperes por mim,
eu, os meus livros,
e o cheiro deles,
não voltaremos.


Não esperes por mim,
se o fizeres
vais morrer no cais...


P.S. Prefiro o linho e o algodão,
à névoa cambraia,
na minha idade
não há transparências...


Páginas excepcionais # 8 "A varrer folhas secas"



"Todas aquelas lindas crianças são esterilizadas até ao fim desse ano escolar de 1936-37: A Shirley Temple da Silésia, a Mónica, o Volker, a VV, a Gnendl...O que me faz pensar na altura como é que os cirurgiões e médicos da Alemanha conseguiam dormir à noite. Mais tarde, claro, viremos a saber que dormiam perfeitamente.
Um dia, o Volker pega num desenho que fiz dele e desenha estrelas por cima da cara toda. Fico furiosa, porque trabalhei bastante para fazer um retrato fiel, e exijo-lhe, com voz de má, que me diga, o que está a fazer. Arrepiando-se, responde: - A varrer folhas secas.
Quando lhe saltam as lágrimas dos olhos, ajoelho-me ao pé dele e peço-lhe desculpa. Ele cai-me nos braços, e eu abraço-o com força, implorando-lhe que me perdoe. Desde então, sempre que um dos miúdos me perguntava porque estava a fazer qualquer coisa que eles achassem estranho, respondia muitas vezes «A varrer folhas secas» antes de dar a minha verdadeira explicação, o que fazia sempre com que o Volker e eu sorríssemos em simultâneo.
Abraçar aquele miúdo lindo que me treme nos braços é um momento importante para mim: não me tinha apercebido do poder que tinha sobre estes pequenos seres. Nem de que até então ainda estava a reprimir uma grande parte do meu amor, pensando que os professores não deviam mostrar o seu coração aos alunos.
Devemos ser suaves, suaves, suaves uns com os outros, porque somos muito frágeis... É o que os meus miúdos me ensinam nesse ano, e é uma lição que eu precisava muito aprender."

Richard Zimler, in a Sétima Porta, pag. 478 e 479.

domingo, 22 de novembro de 2009

Grito de Socorro

Em mim há sempre
despedida:
Como alguém que se afoga
e com roupas
pesadas da água do mar
oferece o seu último amor
a uma pequena nuvem.

Hilde Domin, in antologia Estende a mão ao milagre, Cosmorama, Edições.

sábado, 21 de novembro de 2009

Protego

Grandes poemas para viagens pequenas.

Retirado do blog do João Negreiros

hora da alegria


Ainda não é hora da alegria se levantar antes de mim...

do sol entrar no quarto

surripiar a alegria

irem os dois para o jardim

espalhar tinta nas flores

cuidar dos ninhos dos pássaros!


É Novembro...

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Assim ele se Ilumine



Um homem parte
Madrugada fora
Rumo à Cidade.

Leva os pés em botas pesadas
E as costas numa trouxa em monge.

O caminho que atravessa a distância
Arrasta-se
Sombrio e penoso.

Súbito
Ilumina-se o homem
Pelo sol que se levanta
Nas franjas da madrugada.
Cada raio de sol que se acende
É uma cor que pinta a caminhada.

Animado pelas cores do sol levante
O homem não atravessa as colinas da paisagem.
O caminho faz-se pintura de Van Gogh
Em rectângulos de tulipas regulares.

Caminha agora
O homem
Por etapas de tulipas
De cores ordenadas.
E se a chuva vier
O homem há-de caminhar pelos caminhos tulipas
E por dentro das cores arco-íris.

Assim ele se ilumine…
Pintura de Van Gogh Campo de Bolbos

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Dia Mundial da Filosofia

Não existe «a» filosofia, mas «as» filosofias e sobretudo o filosofar: "a filosofia não é um longo rio tranquilo onde cada um pode pescar a sua verdade. É um mar no qual mil ondas se confrontam, onde mil correntes se opõem, se encontram, às vezes se misturam, separam-se, e voltam a encontrar-se, opondo-se de novo... Cada um navega como pode e é isso a que chamamos filosofar." Há uma perspectiva filosófica (..) mas felizmente é multifacetada.

Fernando Savater - As Perguntas da Vida, ed. Dom Quixote, Lisboa, 3.ª edição

Pietá

Pietá, escultura de Michelangelo(1475-1564)


"Agora completou-se o meu sofrimento e inominavelmente
dele estou repleta. Fico imóvel como o interior
da pedra fica imóvel.
Dura como estou, uma coisa apenas sei na minha dor:
Tu cresceste
e cresceste,
para te elevares
como dor desmedida
muito para lá da medida do meu coração.
Agora jazes atravessado no meu colo,
agora já não Te posso
dar à luz."

Rainer Maria Rilke, in A vida de Maria.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Plantar sonhos




Nada tem mais importância do que plantar os nossos sonhos e deixá-los crescer.

Casa de Juízo

(...)
E pela terceira vez Deus abriu o Livro da Vida do Homem. E Deus disse ao Homem: " Má foi a tua vida, e com o mal pagaste o bom e com maldade a doçura. Às mãos que te alimentaram feriste e aos seios que te amamentaram desprezaste. O que veio para ti com água foi de ti sedento e aos homens banidos que te esconderam de noite nas suas tendas traíste tu antes da madrugada. Ao teu inimigo que te poupou [apanhaste] numa emboscada, e ao amigo que andava contigo vendeste por um preço e aos que te trouxeram Amor deste em troca luxúria."
E o Homem respondeu e disse: "Tudo isso eu fiz."
E Deus fechou o Livro da Vida do Homem e dissse: " Por certo que te mandarei para o Inferno. Mesmo para o inferno te mandarei."
E o Homem gritou: "Não podes."
E Deus disse ao Homem: "Por que não te posso eu mandar para o Inferno, e por que razão?"
"Porque no Inferno tenho eu sempre vivido" respondeu o Homem.
E houve silêncio na Casa de Juízo.
E depois de um tempo Deus falou e disse ao Homem: Visto que não te posso mandar para o Inferno, por certo te mandarei para o Céu. Mesmo para o Céu te mandarei."
E o Homem clamou: " Não podes."
E Deus disse ao Homem: " Por que não te poderei eu mandar para o Céu, e por que razão?"
"Porque nunca e em nenhum lugar pude imaginá-lo" respondeu o Homem.
E houve silêncio na casa de Juízo.


excerto de poema em prosa de Oscar Wilde, traduzido por Fernando Pessoa e publicado na revista Egoísta, Número especial de Junho de 2008, dedicado a Fernando Pessoa.

Retribuir


Gosto de retribuir o sorriso e tenho pena de não poder sempre retribuir a luz do olhar.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Engenho de café ou cacau

Chove!
Chove...
Nada posso imaginar sobre esta chuva de Outono, que não me cause dor.
Gosto das folhas secas do Outono a dançar no vento e das saias das mulheres a esconderem-se dele...
Com esta chuva nem dança de folhas nem bailado de saias.
Se fosse uma chuva de Verão, que refresca a terra, que liberta aromas de amor apressado, que fortalece as árvores sedentas, vinha mesmo a calhar.
Mas... se é chuva que eu tenho, e se é em chuva que eu penso, o que me falta é o engenho para saboreá-la.
Chuva de Verão é refresco de limão, com aroma de café, num dia quente.
Se eu me libertar do nevoeiro, das folhas secas e do casaco, talvez possa saborear o limão e cheirar o café.
Estou à lareira, acendi a minha fogueira, vou fazer uma tisana de limão e torrar café.
Talvez lá fora esteja a cair chuva quente... o nevoeiro está cada vez mais claro!
Chove!
É hora de desfrutar o sabor do limão, o aroma do café e o exótico paladar de um chocolate quente acabado de inventar.

domingo, 15 de novembro de 2009

O Silêncio


Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,
e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,

quando azuis irrompem
os teus olhos

e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,

pelo silêncio fascinadas.

Eugénio de Andrade

Balada de Outono



Agora, que o Outono já nos convida a trazer um sol interior a aquecer-nos a alma.
Agora, que as nossas casas necessitam do fogo intenso de uma lareira para esquecerem a escuridão.
Agora, é preciso cantar!
E nunca, mas nunca, deixar as ribeiras chorar

Nem os olhos entristecer...

sábado, 14 de novembro de 2009

As cores, as flores, os alimentos, os fungos do Outono


A mesa das aves


O Ácer tijolo


A estrelícia




O Amarelo Ginko Biloba


O Amarelo Liriodendrum


O Roxo Liquidambar


O Vermelho Ácer


O Rubro Ácer


A Lua em fuga para o dia


A noite agrafada de luz

Sei que a ternura

Sei que a ternura
Não é coisa que se peça,
E dar-se não significa

Que alguém a queira ou mereça.
Estas verdades,
Que são do senso comum,
Não me dão conformação
Nem sentimento nenhum
De haver força e dignidade
Na minha sabedoria...
Eu preferia
- Sinceramente, preferia! -
Que, contra as leis recolhidas
No que ficou dos destroços
De outras vidas,
Tu me desses a ternura que te peço;
Ou que, por fim, reparasses
Que a mereço.


Reinaldo Ferreira, In Livro IV- Dispersos

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Maria e Salomé

Maria.
-Dizes-me tu, Salomé, o que é um amor impossível?
Salomé.
- Não posso dizer-te nada sobre amores impossíveis,
Nunca vivi nenhum. Vivi amores de minutos, de horas, de dias,
e de anos. Nunca nenhum impossível.
Todos eles tiveram, o seu início,
o seu clímax e o seu fim.
Maria.
- Vês as coisas de forma muito prosaica.
Esses amores de minutos, de horas ou de dias,
porque não tiveram continuidade?
Salomé.
- Ninguém os quis agarrar.
Não tinham suficiente alarme, emergência, estado de sítio,
recolher obrigatório, paixão, rebelião, fogo, sentido,
desespero, loucura, para ultrapassarem o tempo exacto que duraram.
Maria.
- Procurei nos livros. Visionei nos filmes. Sondei os amigos.
Falei comigo a sós, mas nada descobri.
Salomé.
- Mas, e o que soubeste, de toda essa busca?
Maria.
- Uns diseram-me que um amor impossível é o que não tem futuro.
Outros, que é aquele que encontra tantos encolhos,
que os amantes dele desistem.
Outros contaram histórias de amores
sem maçãs, nem laranjas, nem pão, nem cores,
que nasceram e morreram em vão.
Salomé.
- Ficaste com respostas?
Maria.
- Não. Mas... procurava a escada do vento e o rastilho do fogo!
Salomé.
- Sim, vejo! Eu penso que não há "amores impossíveis".
O amor cresce com a força com que agarramos,
o que temos e o que nos damos
e com o modo com que nos bastamos e respeitamos.
Cada amor é a união da força solar primitiva
que converge de duas pessoas e é também
a circunstância de nele conviverem essas pessoas
irremediavelmente distintas e sós.
Maria.
- Queres tu dizer que o amor se constrói todos os dias?
Como algo que nunca está perfeito?
Como um caminho, a que não se conhece o rumo?
Salomé.
- O amor é exactamente como o caminho. Faz-se caminhando.
Maria.
- Estou no princípio de um caminho.
Alevantada por um vendaval de loucura.
E a única certeza que tenho
é a da convergência das forças repelentes,
que me acabaste de mostrar.

Desconstruções *18 "a girafa"


A girafa é uma cerca ambulante com mais de 2 metros de altura.

Pintura na Areia



Para curar-me, o feiticeiro
pintou tua imagem
no deserto:
areia de oiro - teus olhos,
areia vermelha - a tua boca,
areia azul para os cabelos,
e branca, branca areia, para as minhas lágrimas.

Pintou durante o dia, e tu
crescias como uma deusa
sobre a imensa tela amarela.
E pela tarde o vento dispersou
tua sombra colorida.

E, como sempre, na areia
Nada ficou senão o símbolo das minhas lágrimas:
areia prateada.

Herberto Helder, in Poesia Toda.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Noites # 2 "solitárias"


Muitas vezes, durante as nossas ausências, encontrei as nossas almas a brincarem juntas, nos lugares onde dormi sozinha.
Talvez, por isso, nunca poderei esquecer-te.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

ventania no infinito

Desperta no meio da noite, uma violeta de luz suspende-se na eternidade.
A névoa que em si contém é como uma ventania que pode abrir-se, a qualquer momento, ao infinito.

domingo, 8 de novembro de 2009

Noites # 1 "silenciosas"


Podia falar-te sobre as noites mais silenciosas.
Aquelas em que a surpresa nos uniu as bocas e impediu as palavras de sairem.
As noites em que nos surpreendemos fogo e espanto no lugar da ausência...

sábado, 7 de novembro de 2009

A Meu Favor

A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer

A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça

A meu favor tenho uma rua em transe
Um alto incêndio em nome de nós todos.

Alexandre O'Neill (1924-1986)

Sombra ou Vento


Muito estranho sempre me pareceu
Os homens adorarem um deus.
E a vida a esse deus dedicarem
E diante dele se curvarem.
Que os deuses são feitos por dentro
Da matéria da sombra ou do vento.

Yüan Mei (1716-1797) China, in Rosa do Mundo 2001 Poemas Para o Futuro

Barca Bela


Pescador da barca bela
Onde vais pescar com ela,
Que é tão bela,
Oh pescador?

Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Oh pesacador!

Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela,
Oh pescador!

Não se enrede a rede nela,
Que perdido é remo e vela
Só de vê-la,
Oh pescador.

Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela
Foge dela
Oh pescador!

Almeida Garrett (1799-1854), in Rosa do Mundo 2001 poemas para o futuro.

Páginas excepcionais # 7 "Memória..."

«...Não há amor imediato; o desejo transtorna a verdade, cai como chuva sobre o sangue, dissolvendo-lhe o tempo de onde vem e o espaço para onde vai. Não se consegue amar completamente senão na memória, Sebastião. As histórias que sonhámos para as pessoas amadas flutuam na neblina dos dias muito quentes, como mentiras leves tocadas pelo peso da verdade. Espuma do mar desfeita ao toque dos dedos. Não te canses a inventar-me no desejo do teu corpo, Sebastião, que o que em mim crês amar não é mais do que a memória das lágrimas, das tuas lágrimas, feitas de uma luz distinta das minhas.»

Inês Pedrosa, in "A Eternidade E O Desejo", pag. 59.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

arte


"Toda arte é uma revolta contra o destino do homem".

André Malraux (3.11.1901-23.11.1976).

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

uma visão da morte.

A morte é o mais impressionante dos acontecimentos que nos é dado observar.
As pessoas que acabam de morrer ficam, de um momento para o outro, num autismo absoluto.
Num estado de absoluta parilisia e incomunicabilidade físicas e psíquicas.
Querem os vivos, seus entes queridos, dizer-lhes a última palavra e o morto já não ouve.
Querem perguntar-lhe como foi a sua morte, ou inteirar-se do seu ser e estar do lado de lá da vida, e não há resposta alguma.
Para os vivos, os mortos além de terem espelhada uma absoluta serenidade, têm um ar de descanso e de desapego absolutamente fascinantes.
E não compreendendo, os vivos, como tal é possível, ficam a ensimesmar na injustiça que é o morto estar ali fresco, descansado, sereno e não repartir com eles o segredo de tão mágica transformação.

Anjo


Disseste-me palavras tão sumidas
Como as estrelas pelo nevoeiro.
Se eu fosse o vento
Ou um tiro certeiro...
E, contudo, eu preciso de chegar
E tornar-me
(Para além da folhagem deste carme)
Qualquer coisa com asas e sem medo;
De contrário, o fracasso
Do meu cavalo atordoará o espaço
e o seu aumento aumentará o segredo.
Sabes, anjo, o que eu quero
Ao menos?
Não é fazer dos poços oceanos:
É uma luzinha que me faça amar
A luz que não acaba de estoirar.

António Cabral, In o mar e as águias