sábado, 30 de abril de 2011

fim de abril



Deitei a tarde pela janela e fiquei só
com a linha onde a luz se suspendeu
num tom rosado, tão calmo, quase
artificial neste fim de Abril, a descer sobre
o azul da minha voz. (...)

Não sei se tentava voltar aos braços
de alguma remota ilusão, se me fiquei
por um circuito de estilhaços ou qualquer
outra lesão silenciosa.(...)

Não era como se tivéssemos muito
a esperar das ruas, mas saímos
e depressa demos com o labirinto de excessos
na noite que o corpo nos exigia.(...)

Esquecemos tantas outras vidas.
sentados de costas para a entrada,
(...)

(...)
                                    Os dois,
como é normal, mimando e entretendo
a carne agarrada aos ossos.


Diogo Vaz Pinto
A carne agarrada aos ossos
RESUMO a poesia em 2009

quinta-feira, 28 de abril de 2011

MEMÓRIA FRESCA DO HOMEM QUE JÁ FOI MENINO.

Eu tenho memória dos campos de linho,
Do viçoso verde bordado a azul
Que a nortada embalava para uma sesta depois do meio-dia.


A memória de o separar do solo,
Da minha mãe que o tecia,
Da roca e do fuso que me tiravam o colo.


Os lençóis de linho anunciavam a primavera
Quando a sua pureza e frescura invadiam a minha cama,
Anos a fio numa juventude que julguei eterna.


A modesta flor azul já não espelha a frescura dos campos,
A nortada chega mas não tem linho para embalar.
Os lençóis dormem amarelecidos no baú,
Mas basta uma barrela e voltam a anunciar a primavera.

domingo, 17 de abril de 2011

prece de lume ao vento



O vento em burburinho pião
sem destino certo
roda no chão.

E os velhos
em rezas,
murmúrios
e, sal ao lume.

E o lume leão domado
em labareda e foguetório
desafiando o vento...

PM

sábado, 16 de abril de 2011

Três definições para o poema



o touro
que na arena é surpreendido
pela dor da lâmina

a bomba
que teme se espatifar
na casa onde um menino sonha

o corpo
que aberto sobre a maca
espera sua autópsia

Andréa Catrópa

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Na madrugada


O canto do pássaro
não é palavra
é música.


O primeiro compositor
compôs em pássaro.


Em canto de pássaro
Wolfgang acompanha Manoel.


PM

quarta-feira, 13 de abril de 2011

tecer a memória


A minha memória dos campos de linho
não entrou pelo meu olhar.

Minha mãe contava os campos de linho
com flores azuis pequenininhas
bailando na brisa
como um céu de verão.


Minha mãe levantava cedo
e dizia: a manhã está fresca
como a água das fontes
e o dia lindo como uma rosa.


E estava.


Daí eu guardei memória certa dos campos de linho
tecida pelos olhos de minha mãe.

PM

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Porque sim...

Foto gentilmente cedida pelo Autor



fiquei com a face salpicada de água.
ou será, com o peito numa fonte?
as palavras só me dobram as dúvidas

PM

O Jardim


Pomar de mil cores
Asas de regressar ao azul
Esperança de água.


Mundos de filigrana orvalhada
Luz de todas as claridades
Sementes de água


Arbustos de novelos brancos
Ócio florido de Maios
Frutos de água


Encanto de pequenas coisas
Ninhos de regressar do azul
Fontes de água

PM

domingo, 10 de abril de 2011

Lunar farside








É importante que nos lembremos do valor daquilo que não podemos tocar.
Não é verdade que o espaço vazio dentro da chávena é o que a torna útil?
Da mesma forma, o silêncio entre os passos, os espaços entre as notas musicais
e os espaços vazios no próprio espaço contêm todos os mistérios das suas formas possíveis.

Vera Mantero

sábado, 9 de abril de 2011

Lua Nova


Meu novo quarto
Virado para o nascente:
Meu quarto, de novo a cavaleiro da entrada da barra.




Depois de dez anos de pátio
Volto a tomar conhecimento da aurora.
Volto a banhar meus olhos no mênstruo incruento das madrugadas.




Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir:
Hei de aprender com ele
A partir de uma vez
- Sem medo,
Sem remorso,
Sem saudade.




Não pensem que estou aguardando a lua cheia
- Esse sol da demência
Vaga e noctâmbula.
O que eu mais quero,
O de que preciso
É de lua nova



Manuel Bandeira

sexta-feira, 8 de abril de 2011

O "Quim"


O Quim é um tipo que vive no chão da vaca.
Ele coisa através dela.
Os olhos do Quim cheiram a bosta da vaca,
O seu nariz embrulha-se em imagens de erva.
O Quim coisa que mulher tem forma de vaca.
Ele anda parecido com vaca, cambado,
para não assustá-la e para não desidentificar.
Ele é manso como a vaca que ele amansa.
Quando o Quim era catraio,
no seu horizonte tinha vaca, prado e trabalho.
Se ele queria brincar, ele brincava de vaca,
com vaca.
Certo dia, o Quim parou nos nossos terreiros.
Ele era um pé-fresco que servia para brincar.
Era uma espécie de coisa falante às mijinhas.
Contamos aventuras dos cavalos das bicicletas,
da leveza da patela e da habilidade na macaca.
O Quim precisava de uma memória para nos dar.
Então, ele falou:- Quim mim puxa a vaca, vaca mim puxa Quim.
Ele ganhou o duelo.
Nenhum tinha uma memória tão fantástica!
Eu vejo o Quim de vez em vez
Agora ele tem musgo nos pés
está na idade da pedra.

PM

memória de sol


O sol segue
da nascença para a queda
entre duas dores.
A dor que separa a manhã e
a dor que ama a noite.
No deslizar entre elas deixa
uma memória de esplendor.


Para trás fica a manhã,
chilreada de asas e
orvalhada de luminosa frescância.


À frente namora a tarde
que alcançará na vizinhança.
Não há como querer fugir desse horizonte.
O Sol empina-se sobre a tarde
e cai rubreando no seu regaço.


O que fazem à noite é do conhecimento  geral.
No fim da noitada nasce a manhã.

PM

quinta-feira, 7 de abril de 2011

E danço...



Estendi cordas de campanário a campanário;
grinaldas de janela a janela;
correntes de ouro de estrela a estrela,
e danço.

Arthur Rimbaud

terça-feira, 5 de abril de 2011

Luz



A luz deste dia é tão
ave
brisa
dança
sorriso
que o meu corpo deseja ser azul.

O corpo deste dia é tão
rio
flor
fruto
folha
que a minha luz deseja ser cor.

PM

domingo, 3 de abril de 2011

Uma voz na pedra

Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha ebriedade é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.

Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.




António Ramos Rosa

Carlinho Besouro

Nasceu quieto.Branco.
Calado.
Olhos sem luz.
Tudo presságios.
Maus.
Outros, seus pares, aprendiam a escrever, a contar, a ler.
Ele rimava besouros com garrafas.
Flores com campos.
Meninas com sorrisos.
Outros aprendiam equações matemáticas, geografia, biologia.
Ele metia besouros nas garrafas.
Flores nas orelhas.
Olhos nas meninas que sorriam.
Contava os besouros no fim da jornada
e histórias épicas sobre bebedeiras de besouros.
De largo sorriso, oferecia as garrafas rimadas com besouros

às flores preferidas do seu coração.
Nesta inocentez foi escondido pelos pais, nos dias festivos.
Não viu casamento ou baptismo de irmão.
Nesses dias, deambulava com fome.
Comia flores, engarrafava besouros.
Bebia água nas fontes públicas.
Um dia, já homem, foi trabalhar
nas obras.
Passou um besouro.
Foi atrás dele.
A prancha não era o campo.
A planura ficava lá muito em baixo.
Esqueceu-se das alturas.
Voou por ali abaixo perfeito besouro.
Acabou no fundo do andaime.
A cara esborrachada na garrafa.
E os besouros aflitos, a rodá-lo...



PM

sábado, 2 de abril de 2011

A SESTA


A sesta é uma acamação de gente que
inventa duas manhãs em cada dia.

PM

Manhã Clara


O dia explode no horizonte de nascer.
Na explosão a luz espirrou e 
todo o azul se tingiu em sanguínea.
O sol que demorava no meio da tardinhança
veio luzeiro limpar a manhã.
Ele trouxe seus raios de apaga/dor 
e a manhã vingou, para sempre, Clara.

A manhã, com segureza, é a parte do dia que se vê primeiro!


PM

sexta-feira, 1 de abril de 2011

sem milagres...


[...]
- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço - e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega dos meus lábios,
sinto que me faltam um girassol, uma pedra,
uma ave - qualquer coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto, a criança,
a água, o deus, o leite, a mãe, o amor,
que te procuram.

Herberto Helder
in Poesia Toda