sexta-feira, 25 de maio de 2012

Manoel de Barros, premiado, premeia-nos com poema inédito!


Fôssemos merecidos de água, de chão, de rãs, de árvores, de brisas e de garças!
Nossas palavras não tinham lugar marcado. A gente andava atoamente em nossas origens.
Só as pedras sabiam o formato do silêncio. A gente não queria significar, mas só cantar.
A gente só queria demais era mudar as feições da natureza. Tipo assim: Hoje eu vi um lagarto lamber as pernas da manhã. Ou tipo assim: Nós vimos uma formiga frondosa ajoelhada na pedra.
Aliás, depois de grandes a gente viu que o cu de uma formiga é mais importante para a humanidade do que a Bomba Atômica.


Manoel de Barros.
Prémio de Literatura Casa da América Latina

segunda-feira, 14 de maio de 2012

É preciso não esquecer nada.




É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta 
nem o fogo aceso;
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.

É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.

O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
O nosso nome, o som da nossa voz
O ritmo do nosso pulso.

O que é preciso é esquecer o dia carregado de atos,
A ideia de recompensa e de glória.

O que é preciso é ser como se já não fossemos,
vigiados pelos próprios olhos
Severos conosco, pois o resto não nos pertence.

Cecília Meireles   

Reconhecimento à loucura


Já alguém sentiu a loucura
vestir de repente o nosso corpo?
Já.
E tomar a forma dos objectos?
Sim.
E acender relâmpagos no pensamento?
Também.
E às vezes parece ser o fim?
Exactamente.
Como o cavalo do soneto de Ângelo de Lima?
Tal e qual.
E depois mostrar-nos o que há-de vir
muito melhor do que está?
E dar-nos a cheirar uma cor
que nos faz seguir viagem
sem paragem
nem resignação?
E sentirmo-nos empurrados pelos rins
na aula de descer abismos
e fazer dos abismos descidas de recreio
e covas de encher novidade?
E de uns fazer gigantes
e de outros alienados?
E fazer frente ao impossível
atrevidamente
e ganhar-lhe, e ganhar-lhe
ao ponto do impossível ficar possível?
E quando tudo parece perfeito
poder-se ir ainda mais além?
E isto de desencantar vidas
aos que julgam que a vida é só uma?
E isto de haver sempre ainda mais uma maneira pra tudo?

Tu só, loucura, és capaz de transformar
o mundo tantas vezes quantas sejam as necessárias para olhos individuais.
Só tu és capaz de fazer que tenham razão
tantas razões que hão-de viver juntas.
Tudo, excepto tu, é rotina peganhenta.
Só tu tens asas para dar
a quem tas vier buscar.


Almada Negreiros

Almada Negreiros
RECONHECIMENTO À LOUCURA
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terça-feira, 8 de maio de 2012

Cala-te a luz arde entre os lábios




Cala-te, a luz arde entre os lábios
e o amor não contempla, sempre
o amor procura, tacteia no escuro,
esta perna é tua?, é teu este braço?,
subo por ti de ramo em ramo,
respiro rente à tua boca,
abre-se a alma à língua, morreria
agora se mo pedisses, dorme,
nunca o amor foi fácil, nunca,
também a terra morre.

Eugénio de Andrade



Cala-te, a luz arde nas folhas coloridas
e o sol não queima, sempre
o sol arrefece, tacteia no outono,
esta folha é do raio vermelho?, é tua esta amarela?
Ele desce de ramo em ramo,
e respira rente à terra,
abre-se a terra ao sol, morreriam
ambos se assim não fosse, dormem,
nunca a vida foi fácil, nunca,
também a terra morre.

Glosa de Eugénio de Andrade por PM.