segunda-feira, 31 de maio de 2010

simetricos e exactos


Vamos morrer,
mas somos sensatos,
e à noite,
debaixo da cama,
deixamos,
simétricos e exactos,
o medo
e os sapatos.

Pedro Mexia
'Vamos Morrer'

domingo, 16 de maio de 2010

schiuuu


schiuuu...
(a restante produção segue logo que oportuno)
há um ninho de rola na faia fasciculata do jardim
em frente à porta do meu gabinete.
Ei-lo!!!!!!!!
(ler baixinho e andar com passos de lã)
P.M.

sábado, 15 de maio de 2010

diálogo ao fim na tarde


(os dois na tarde, dentro de casa)
- Acho que tocaram à campaínha!
- Não... e se tocaram
duvido que esteja alguém em casa.
- Então, se duvídas podemos ir embora
(e ficaram)

P.M.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

se isto não é sexo...


- Que é isto?
um estacionamento em que nada fazia sombra em nada, candeias à pesca ao longe, sempre duplas, a da traneira e a da água, a primeira para cima e a segunda para baixo semando a solidão de damas de copas, um carro melhor que o nosso a oscilar para a frente e para trás também de faróis apagados a impedirem que os toiros o vissem, um dos meus pés torcia-se contra o volante, a alavanca das mudanças trilhando-me os rins, um dos rins, enfim o que julgo um dos rins, o do lado oposto amolgava-se no relevo do banco, o meu corpo feito de peças escessivas que estorvavam, nunca esperei que o mar tanto cotovelo que me rasgava a blusa, estou de acordo consigo mãe, que é isto, a minha mãe a aumentar as nódias esticando o tecido
- Não repitas o que eu digo
de boca a tremer no sofá estudando a roupa a aproximá-la do nariz, eu
- Vai assoar-se a mim?
e na altura em que o mar se calou o meu marido calado, mais novo do que parecia antes, a desmoronar-se com palmas que não lhe pertenciam
(pouco lhe pertencia na sua aflição)
ou antes a desamarrotar o que fizemos a fim de supor que não fizemos nada
- Palavra de honra que não fizemos nada
embora a minha mãe
- Que é isto?
não fizemos nada, se ao menos os cavalos regressassem à praia e as sombras pisando o que a vazante deixou, caniços, óleo, algas, uma asa de bilha, o meu marido...

António Lobo Antunes
Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra no Mar?

PRIVATIZE-SE A NUVEM. PIM.


«Privatize-se tudo, privatize-se o mar e o céu, privatize-se a água e o ar, privatize-se a justiça e a lei, privatize-se a nuvem que passa, privatize-se o sonho, sobretudo se for diurno e de olhos abertos. E finalmente, para florão e remate de tanto privatizar, privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas privadas, mediante concurso internacional. Aí se encontra a salvação do mundo... e, já agora, privatize-se também a puta que os pariu a todos.»

José Saramago - Cadernos de Lanzarote - Diário III - pag. 148

quarta-feira, 12 de maio de 2010

mundo pequeno


O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas
maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos.

Manoel de Barros,
O Livro das Ignorãças

quarta-feira, 5 de maio de 2010

o olhar que te dá asas


podes correr o mundo todo
que as tuas mãos
nunca se hão-de saciar de luz

podes até voar daqui para fora
e traçar um caminho até ao sol

que nehuma estrela há-de extinguir
a tua escuridão

nem atenuar esse universo
infinito e fluorescente

como o teu olhar

que te dá asas


Daniel Gonçalves
rumores
para a transparência do silêncio