quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

seguir o vôo da ave...

Pintura de Vieira da Silva

Saí de casa na madrugada. Levava na ideia caminhar sem destino certo, avançando ao sabor do encontro e desencontro dos caminhos.
Pensei apenas em caminhos de terra vermelha, solta, e macia, caminhos por onde ninguém tivesse passado, abertos por mim na hora.
Caminhei por entre campos, matas, bosques e florestas. Dormi ao relento, ao frio e ao calor.
Sei que me proponho caminhar para sempre, porque é o único destino que me apraz.
Não me quero sentar muito tempo, nunca mais. Nem saber o preço das coisas que se compram, nem quanto ganham as pessoas, nem que bens tem o dono dos sítios por onde passo.
Satisfaço-me com o encontro do caminho e com a alegria de o fazer.
Posso seguir o vôo de uma ave, decidir endireitar o pé de uma árvore jovem, na floresta, ou dormir embalado pelo mar todo um dia.
Não tenho pressa. Não tenho dever. Não conheço ninguém. E nada espero.
Já não tenho sapatos e as roupas que uso já não são minhas.
A minha alegria é caminhar e surpreender-me com a caminhada.
Vivo de quase nada. Os meus olhos cresceram, memória das visões de tantos mundos.
As minhas mãos encolheram, não precisam de afastar, ter ou recolher.
Estou finalmente só
Eu...

P.M.

Profecia de ilusões #18 "a sombrinha"

The Umbrella By Luminatii
A sombrinha é pintada de negro andorinha, caído do céu.

Gerês

Quando me levantei
já as minhas sandálias andavam a passear
lá fora na relva
Esta noite
até os atacadores dos sapatos floriram .

Jorge de Sousa Braga

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

A Partida

Dei ordens para irem buscar o meu cavalo ao estábulo. O criado não me entendeu. Fui eu próprio ao estábulo, selei o cavalo e montei. Ouvi ao longe o som de uma trombeta e perguntei-lhe o que era aquilo. Não sabia de nada, não tinha ouvido nada. Junto ao portão, fez-me parar e perguntou: «Aonde vais, senhor?» «Não sei», respondi, «para longe daqui, para longe daqui. Sempre para mais longe daqui, só assim poderei chegar ao meu destino.» «Então sabes qual é o teu destino?», perguntou. «Sim», respondi eu, «ouviste o que eu disse: "longe-daqui", é esse o meu destino.» «Mas não levas farnel», disse ele. «Não preciso de farnel», respondi eu, «a viagem é tão longa que vou de certeza morrer de fome se não me derem alguma coisa pelo caminho. Nâo há farnel que me possa salvar. Felizmente, é uma viagem verdadeiramente extraordinária.»

Franz Kafka
in Parábolas e fragmentos

A Última Pincelada


Viveu em tempos um pintor
que nunca conseguia acabar de pintar uma
ave, fosse ela uma cegonha ou uma garça.
Quando se preparava para dar
a última pincelada, ela levantava vôo.
E o pintor ficava muito tempo ainda a persegui-la
com o pincel no céu
azul...

Jorge de Sousa Braga

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Dança sobre cabeça de alfinete

" Agora estavam realmente casados havia mais de metade da vida dela. Uma eternidade, chamara-lhe ela. E assim seria, se a eternidade fosse flexível, e quem poderia afirmar que não era? Qual seria a diferença entre a amplitude da eternidade e o número de anjos capazes de dançar sobre uma cabeça de alfinete? Uma briga de filósofos."


Colleen McCulloug
O Toque de Midas

O Melhor do Mundo são as Crianças


Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre,
bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor,
quanto há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

Fernando Pessoa

Paginas excepcionais # 23 "não há linguagem sem engano"


"De todas as mudanças de língua que tem de enfrentar o viajante em terras longínquas, nenhuma iguala a que o espera na cidade de Hipácia, porque não diz respeito às palavras mas sim às coisas. Entrei em Hipácia uma manhã, um jardim de magnólias reflectia-se em lagunas azuis, eu andava por entre os canteiros seguro de descobrir belas e jovens damas a tomar banho: mas no fundo das águas os caranguejos mordiam os olhos das suicidas de pedra atada ao pescoço e cabelos verdes de algas. Senti-me defraudado e pretendi pedir justiça ao sultão. Subi as escadarias de pórfiro do palácio de cúpulas mais altas, atravessei seis pátios de azulejos com repuxos. A sala no meio estava barrada por grades: os forçados com negras correntes amarradas aos pés içavam pedras de basalto de uma mina que se abria debaixo da terra. Só me restava interrogar os filósofos. Entrei na grande biblioteca, perdi-me entre as estantes que vergavam sob o peso das encadernações de pergaminho, segui a ordem alfabética de alfabetos desaparecidos, subi e desci corredores, escadas e pontes. No mais remoto gabinete dos papiros, numa nuvem de fumo, apareceram-me os olhos apatetados de um adolescente deitado numa esteira, que não tirava os lábios de um cachimbo de ópio.— Onde está o sábio? — O fumador indicou-me a rua pela janela. Era um jardim com jogos infantis: os jogos de paulitos, os baloiços, o escorrega. O filósofo estava sentado na relva. Disse: — Os sinais formam uma língua, mas não a que julgas conhecer. — Compreendi que devia libertar-me das imagens que até aqui me haviam anunciado as coisas que procurava: só então conseguiria entender a linguagem de Hipácia. Agora basta que oiça relinchar os cavalos e zunir os chicotes e logo me assalta uma trepidação amorosa: em Hipácia tive de entrar nas cavalariças e nas oficinas dos ferradores para ver as belíssimas mulheres que montam nas selas de coxas nuas e polainas nas pernas, e que mal se aproxima um jovem estrangeiro o deitam sobre montes de feno ou de serradura e o apertam com os rijos mamilos. E quando a minha alma não pede outro alimento e estímulo que não seja a música, sei que tenho de procurá-la nos cemitérios: os tocadores escondem-se nos túmulos; de uma cova para outra correspondem-se trinados de flautas e acordes de harpas. Decerto mesmo em Hipácia também chegará o dia em que o meu único desejo será partir. Sei que não deverei descer ao porto mas sim subir ao pináculo mais alto da fortaleza e esperar que passe um navio lá por cima. Mas passará alguma vez? Não há linguagem sem engano."

Italo Calvino, in As Cidades Invisíveis

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Galeria de retratos *1 "Alice, flor de malvaísco"


Alice
Era uma mulher indómita.
Deambulava de dia ou de noite por Jovim.
Andava sem destino firmado ou definido.
Comia quando os pobres se cansavam de a ver beber.
Vestia a roupa sem olhar o lado ou o tempo.
Saía igual com a virtude ou com a perversidade.
Encontrava-se muitas vezes com destinos trágicos
e engravidava frequentemente deles.
Sofria dores nunca contadas
ouvidas em gritos que rasgavam noites de bréu.
Perdera tudo.
Os pais que a tinham semeado.
O homem que a fizera flor.
Os filhos que gerara e não criava.
Desapareceu ela e a bebida que calava debaixo da saia
num dia frio de Dezembro.
Não a procuraram.
Os cães encontraram-na, num dia de Primavera
nos limites de Jovim
no fundo de um poço
rodeado de flores de malvaísco.


P.M.

Janelas de segredos e perfumes



Escreves nas linhas da tua mão.
O espaço meu
onde se elevam os lábios, o peito e os dedos,
mãos de linho que visitam o meu corpo,
respirando nas suas janelas
segredos e perfumes.

Na hora em que tuas mãos se marcam
com sinais de pele e vertigem
meus ouvidos vagueiam pela floresta luxuriante
onde foi produzido o primeiro canto selvagem.

As bocas anseiam por águas frescas
Vinhos frutados
Romãs
Cerejas…

Desejam nossos sentidos aromas de canela
Limão
Suor…

O ímpeto que agita nossos corpos
torna os dedos loucos,
as mãos em garras, escalam montanhas e
vagas gigantes.

No marulhar das vagas oscilantes,
por entre os fluidos e os relâmpagos,
a música navega.

A lua dita eróticas conjunções
anunciando varandas de sol onde se criam sementes.
P.M.

páginas excepcionais # 22 "arame farpado e roupa ao vento"



"Caiu a noite, uma noite tal que se percebeu que olhos humanos não a poderiam presenciar e sobreviver. Todos o sentiram: nenhum dos guardas, nem italianos nem alemães, teve a coragem de ir ver o que é que faziam os homens quando sabiam que iam morrer.
Cada um despediu-se da vida da forma que lhe era mais própria. Alguns rezaram, outros beberam para além do normal, outros inebriaram-se com a última nefanda paixão. Mas as mães ficaram acordadas para preparar com amoroso cuidado a comida para a viagem, e lavaram os filhos, e fizeram as malas, e de madrugada os arames farpados estavam cheios de roupas de crianças estendidas a secar ao vento: e não se esqueceram das fraldas, dos brinquedos, das almofadas e das cem pequenas coisas que elas bem conhecem, e das quais os filhos sempre precisam. Não fariam também o mesmo? Se amanhã esperassem ser mortos com o vosso filho, não lhe davam hoje de comer?"


Primo Levi
Se Isto É Um Homem

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Ao menino Jesus da infância


Descalço venho dos confins da infância,
E a minha infância ainda não morreu...
Em face e atrás de mim ainda há distância.
Ó Menino Jesus da minha infância,
Tudo o que tenho (e nada tenho!) é Teu!

(Pedro Homem de Mello)

terça-feira, 22 de dezembro de 2009


Profecia de ilusões *17 "anónimos"


O medo e o silêncio rastejam unidos e anónimos para criar pessoas vazias de pensamento e vontade.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Desconstruções *22 "o silêncio"


O silêncio tem esquinas impossíveis de dobrar pela ausência de palavras.

Paginas excepcionais # 21 "levado pelo vento"


"Perdi o amor por essa espécie de terra, pensou, já não me interessa senti-la entre os dedos. Já não quero o verde e o cas­tanho, mas o amarelo e o vermelho; não a humidade, mas a ari­dez; não a sombra, mas a luz; não o macio, mas o duro. Estou a transformar-me numa outra espécie de homem, se é que há duas espécies de homens. Se me cortassem, disse, estendendo os pulsos, olhando os pulsos, o sangue não jorrava; havia de infiltrar-se nos poros e secar. Cada dia que passa, tomo-me mais pequeno, mais duro e mais seco. Se morresse aqui, à en­trada da caverna, ao olhar para a planície, com a cabeça apoia­da sobre os joelhos, um dia seria levado pelo vento e mantido intacto, como alguém sufocado pela areia do deserto. Nos seus primeiros dias no alto da montanha, saía a va­guear, virava pedregulhos, mastigava raízes e bolbos. Um dia abriu um formigueiro e comeu as larvas, uma a uma. Sabiam a peixe. Mas agora já não ia à aventura para comer e beber. Não explorava o seu novo mundo. Não transformou a caverna em habitação, nem lá guardava qualquer recordação dos dias que iam passando. Nada havia que esperar e apenas contemplava, todas as manhãs, a sombra da montanha que se alongava cada vez mais até ele e, de repente, era invadido pela luz. Sentava­-se ou deitava-se, como um sonâmbulo, à saída da caverna, de­masiado fatigado para se mover ou demasiado indiferente. Às vezes dormia tardes inteiras; e acudia-lhe à mente se estaria a viver numa espécie de êxtase."

JM Coetzee, A Vida e o Tempo de Michael K

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Primeira página IV "A Madrugada"

"A Manhã vem chegando devagar, sonolenta; três quartos de hora de atraso, funcionária relapsa. Demora-se entre as nuvens, preguiçosa, abre a custo os olhos sobre o campo, ai que vontade de dormir sem despertador, dormir até não ter mais sono! Se lhe acontecer arranjar marido rico, a Manhã não mais acordará antes das onze e olhe lá. Cortinas nas janelas para evitar a luz violenta, café servido na cama. Sonhos de donzela casadoira, outra a realidade da vida, de uma funcionária subalterna, de rígidos horários. Obrigada a acordar cedíssimo para apagar as estrelas que a Noite acende com medo do escuro. A noite é uma apavorada, tem horror às trevas.
Com um beijo, a Manhã apaga cada estrela enquanto prossegue a caminhada em direcção ao horizonte. Semi-adormecida , bocejando, acontece-lhe esquecer algumas sem apagar. Ficam as pobres acesas na claridade, tentando inutilmente brilhar durante o dia, uma tristeza. Depois a Manhã esquenta o sol, trabalho cansativo, tarefa para gigantes e não para tão delicada rapariga."


Jorge Amado in o Gato Malhado e a Andorinha Sinhá

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Paginas excepcionais # 20 "Gherardo"




«O amor de alguém é um presente tão inesperado e tão pouco merecido que devemos espantar-nos que não no-lo retirem mais cedo. Não estou inquieto por aqueles que ainda não conheces, ao encontro de quem vais e que porventura te esperam: aquele que eles vão conhecer será diferente daquele que eu julguei conhecer e creio amar. Não se possui ninguém (mesmo os que pecam não o conseguem) e, sendo a arte a única forma de posse verdadeira, o que importa é recriar um ser e não prendê-lo. Gherardo, não te enganes sobre as minhas lágrimas: vale mais que os que amamos partam quando ainda conseguimos chorá-los. Se ficasses, talvez a tua presença, ao sobrepor-se-lhe, enfraquecesse a imagem que me importa conservar dela. Tal como as tuas vestes não são mais que o invólucro do teu corpo, assim tu também não és mais para mim do que o invólucro de um outro que extraí de ti e que te vai sobreviver. Gherardo, tu és agora mais belo que tu mesmo. Só se possuem eternamente os amigos de quem nos separamos.»

Marguerite Yourcenar, in O Tempo esse grande escultor, Gherardo Perini.

Desconstruções # 22 "cerejas cristalizadas"

No Inverno a cerejeira dá cerejas cristalizadas.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

mulheres de pedra


«As mulheres de pedra são mais castas que as outras, e mais fiéis, porém, são estéreis. Não há fenda por onde se possa introduzir nelas o prazer, a morte, ou a semente de uma criança, e por isso elas são menos frágeis. Por vezes, quebram-se e em cada pedaço de mármore fica contida a sua beleza inteira, como Deus que está em todas as coisas, mas nada de estranho entra nelas que dilate o seu coração. Os seres imperfeitos agitam-se e acasalam-se para se completarem, mas as coisas só belas são solitárias como a dor humana.»

Marguerite Yourcenar in o Tempo esse grande escultor, Gherardo Perini.

Págianas excepcionais # 19 "saudades de Deus"


«Passei a noite acordado a ver coisas que não conseguia perceber o que eram. Preferia nunca as ter visto. Pareciam formas que não eram humanas nem animais. De vez em quando mexiam-se, ou faziam barulhos sem explicação. Tive saudades de Deus. Era o único que naquele tipo de ocasiões conseguia fazer companhia a uma pessoa. Por mais selado que fosse o buraco em que estávamos enfiados, havia sempre uma nesga por onde Ele conseguia infiltrar.»

Ricardo Adolfo in Depois de morrer aconteceram-me muitas coisas. Editora Objectiva-Alfaguara

sábado, 12 de dezembro de 2009

Murmúrio de vento


"Em que língua se diz, em que nação,
Em que outra humanidade se aprendeu
A palavra que ordene a confusão
Que neste remoinho se teceu?
Que murmúrio de vento, que dourados
Cantos de ave pousada em altos ramos
Dirão, em som, as coisas que, calados,
No silêncio dos olhos confessamos?"

José Saramago, Os Poemas Possíveis

Eco de silêncio


"Não tinhas
nome. Existias
como um eco
do silêncio. Eras
talvez
uma pergunta
do vento."

Albano Martins, Como um Eco

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Páginas excepcionais #18 "íntimas colinas"

- Diz-me onde é que ela estava quando a viste pela última vez - disse eu.
Ele apontou.
- Estava a subir aquela colina além.
Deixei-o ali e caminhei cerca de quatrocentos metros até ao topo da colina. Fazia tanto frio que tive de levantar as golas do casaco para proteger o pescoço. Sob os meus pés, a terra era uma mistura de areia castanha grossa e pequenas pedras, o leito de um qualquer mar pré-histórico. Para lá da colina havia outras colinas semelhantes, centenas delas, sucedendo-se até ao infinito. A terra arenosa não mostrava pegadas, nenhum sinal de que alguém tivesse passado por ali. Continuei a avançar, cambaleando sobre o solo traiçoeiro que cedia ligeiramente sob o meu peso e resvalava em torrões de areia cinzenta.
Após cerca de três quilómetros, sentei-me a descansar numa pedra branca e redonda. Estava a suar, apesar do frio cortante. A norte, a lua começara a descer. Já devia passar das três da madrugada. Tinha avançado a um ritmo regular, mas lentamente e ao ziguezagues. As colinas e os montículos de terra estendiam-se até ao horizonte negro, cobertos pior cactos, artemísias e feios arbustos cujo nome desconhecia.
Lembrei-me de ter visto mapas daquela região. Não havia estradas, nem aldeias, nem vida humana entre este e o outro extremo do deserto, nada além de terra estéril que se estendia por mais de centena e meia de quilómetros. levantei-me e continuei a avançar. Estava entorpecido de frio, mas o suor escorria-me pelo corpo. A leste, o horizonte acinzentado iluminou-se, assumiu um tom rosado, depois vermelho, até que por fim a bola de fogo gigante surgiu por detrás das colinas escuras. Sobre a desolação da terra reinava uma indiferença suprema, a simples rotina do novo dia que se sucedia à noite, e, contudo, a intimidade secreta daquelas colinas e o seu mistério consolador e mudo tornavam a morte um facto de pequena importância. Podíamos morrer, mas o deserto guardaria o segredo da nossa morte, sobreviver-nos-ia, cobriria a nossa memória com vento, calor e frio eternos.
Era escusado continuar. Como podia eu encontrá-la? E porque havia de a procurar, se tudo o que podia propor-lhe era um regresso à selva brutal que a destruíra? Voltei para trás, tristemente, sob a luz do alvorecer. Camilla pertencia agora às colinas - que elas a protegessem! Deixa-a regressar à solidão das íntimas colinas. Que viva com as pedras a céu aberto, com o vento a soprar-lhe nos cabelos até ao fim. Deixa-a ir em paz.
O sol já ia alto quando alcancei a cabana. O calor começava a apertar. Sammy estava parado sob o umbral da porta.
- Encontraste-a? - perguntou.
Não lhe dei resposta. Estava exausto. Ele fitou-me por alguns momentos e depois recolheu-se. Ouvi-o trancar a porta. O calor tremeluzia sobre o vasto horizonte do Mojave. Dirigi-me ao Ford, levantei do assento o exemplar do meu livro e escrevi na primeira página:

Para Camilla, com amor,
Arturo

De livro na mão, avancei uns cem metros pela desolação adentro, no sentido sudeste. Lancei o livro pelo ar, com toda a força, na direcção que ela tinha tomado. Depois meti-me no carro, liguei o motor e regressei a Los Angeles.

John Fante in Pergunta ao Pó

Desconstruções # 21 "sucesso"


O sucesso transformou-se numa nova e perigosa arma de pressão, cuja chave o poder se vem apressando a dominar.

A vista da minha língua


"Uma língua é o lugar donde se vê o Mundo e em
que se traçam os limites do nosso pensar e
sentir. Da minha língua vê-se o mar. Da minha
língua ouve-se o seu rumor, como da de outros se
ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto.
Por isso a voz do mar foi a da nossa inquietação"

Vergílio Ferreira, Espaço do Invisível V

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

DOMINGA I


Não sei se conhecem Heidelberg, famosa pela sua universidade e pelos brinquedos de madeira destinados ao Natal. Isto dos brinquedos é coisa minha. Também há ursos cor-de-rosa, com uma grande barriga, como se faziam no século passado, no estilo dos contos ingleses para crianças. Depois os ursos de peluche tornaram-se mais laváveis e sem aqueles focinhos bordados a algodão perlé por uma mulherzinha que usava ainda o avental da camponesa do Palatinado e, provavelmente, os sapatos de montanha, de vitela com ilhós.
Eu passei um inverno em Heidelberg, em casa de uma escritora que estivera a maior parte da vida no exílio e que tinha mais de noventa anos. Era, no entanto, extremamente lúcida e com olhos azuis de uma beleza ofuscante. Chamava-se Dominga. Não sei se era um nome inventado, porque vivera em Santo Domingo durante alguns anos, decerto os mais felizes da sua vida. Fora casada com um diplomata e amava-o com essa austeridade dos sentidos com que algumas mulheres contemplam as suas próprias divagações.
Uma floresta em Heidelberg não é o que pensam. Não se parece com uma floresta, mas com alguma coisa de extinto e que só pertence aos nossos sonhos. Eu imagino que na planície castelhana, onde viviam as tartarugas gigantes antes do aquecimento da terra, havia aquele silêncio que fazia perceptível a queda de uma gota de chuva no ar limpo e onde ondulavam as folhas mortas. Levavam uma infinidade de tempo a cair ao chão e eram manobradas pelo vento como as velas de um barco.
A Casa de Dominga, um chalet grande e rasgado de muitas janelas, encontrava-se dentro de um parque sempre húmido e prestes a cair em decomposição. Muitas das casas da floresta estavam encostadas à ravina onde apareciam corças com o ar que lhes ficara do tempo das caçadas, um ar delirante de medo que lhes fazia tremer as orelhas. Mas a casa de Dominga era mais do tipo heráldico, com um portão de ferro que, devido à ferrugem, nunca se fechava.
Eu ocupava o quarto voltado a nascente, onde o marido morrera com um cancro do pâncreas, e digo-lhes que levei algum tempo a habituar-me, embora tudo me parecesse elegante e duma extrema e confortável simplicidade. As paredes estavam cobertas por estantes cheias de livros em línguas que eu não entendia, como o russo e o polonês. Num canto havia um lavatório com tampo de mármore e um saboneteira de loiça. levantei a tampa e surpreendeu-me um sabonete molhado, como se alguém acabasse de se servir dele.
- Esteve alguém neste quarto antes de mim? - perguntei a Dominga. Ela servia-me o chá e empurrou ligeiramente o prato dos biscoitos que se diriam paciências, mas com sabor de menta.
- Não. Ninguém usa esse quarto há muito tempo. - Fez uma pausa embaraçada e disse:- Era o escritório do meu marido.
Já ninguém tinha escritórios e a própria Dominga escrevia no quarto de dormir que era grande, com um leito de campanha e uma pomba de talha dourada pendurada por cima dela. A pomba tinha laivos cor-de-rosa no peito e Dominga disse que ela sangrava. "É um pomba estigmatizada"- disse, com uma espécie de humor frio e completamente calculista indiferente ao que eu podia pensar. (Continua)


Agustina Bessa-Luis in Dominga

Páginas excepcionais #17 "existência trágica"


"Não nos cabe discutir, aqui, esta tomada de posição filosófica. Constatemos somente que, em última instância, o homem moderno a-religioso assume uma existência trágica e que a sua escolha existencial não é desprovida de grandeza. Mas este homem a-religioso descende do homo-religius, e queira-o ou não, é também obra deste, constituiu-se a partir das situações assumidas pelos seus antepassados. Em suma, é o resultado de um processo de dessacralização. [...] Mas isto quer dizer que o homem a-religioso se constitui por oposição ao seu predecessor, esforçando-se por se "esvaziar" de toda a religiosidade e de toda a significação trans-humana. Ele reconhece-se a si próprio na medida em que se "liberta" e se "purifica" das "superstições" dos seus antepassados. Por outras palavras, o homem profano, queira-o ou não, conserva ainda os vestígios do comportamento do homem religioso, mas esvaziado das significações religiosas. Faça o que fizer, é um herdeiro. Não pode abolir definitivamente o seu passado, porque ele próprio é produto desse passado. Constitui-se por uma série de negações e recusas, mas continua a ser ainda assediado pelas realidades que recusou e negou. Para dispor de um Mundo para si, dessacralizou o Mundo em que os seus antepassados viviam, mas para chegar aí, foi obrigado a tomar o inverso do comportamento que o precedia, e este comportamento sente-o ele sempre, sob uma forma ou outra, prestes a reactualizar-se no mais profundo do seu ser."

Mircea Eliade, in O Sagrado e o Profano

domingo, 6 de dezembro de 2009

Páginas excepcionais #16 "filhos do Tempo"


«Amamos um ser mortal como se fosse imortal. Lope de Vega disse-o melhor: àquilo que é temporal chamamos eterno. Sim, somos mortais, somos filhos do tempo e ninguém se salva da morte. Não apenas sabemos que vamos morrer, mas que a pessoa que amamos também morrerá. Somos os joguetes do tempo e dos seus acidentes: a doença e a velhice, que desfiguram o corpo e fazem perder a alma. Mas o amor é uma das respostas que o homem inventou para olhar de frente a morte. Por intermédio do amor roubamos ao tempo que nos mata umas quantas horas que transformamos às vezes em paraíso e outras em inferno. Das duas maneiras o tempo distende-se e deixa de ser uma medida. Para lá da felicidade ou infelicidade, embora seja as duas coisas, o amor é intensidade; não nos oferece a eternidade mas a vivacidade, esse minuto no qual se entreabrem as portas do tempo e do espaço: aqui é lá, e agora é sempre. No amor tudo é dois e tudo tende a ser um.»

Octavio Paz, A Chama Dupla-Amor e Erotismo, Assírio e Alvim 1995

Páginas excepcionais # 15 "a aparência"


«O homem dos lábios com vitiligo gritou: - Vejam só aquilo ali! Lá estão eles outra vez com a mesma coisa...
Aborrecido com a interrupção, o motorista que segurava a revista continuou a ler... Os outros motoristas, porém, já se tinham levantado e olhavam na direcção do centro comercial.
O que estava a acontecer, senhor primeiro-mistro, era um daqueles incidentes tão corriqueiros nos primeiros tempos dos centros comerciais e que costumavam ser noticiados nos jornais sob o título de «Não Haverá Lugar para os Pobres nos Centros Comerciais da Índia»?
As portas de vidro abriram-se, mas o homem que pretendia entrar não foi autorizado a fazê-lo.
O segurança que estava à porta impedira-o. Ele apontou o bastão aos pés do homem e abanou a cabeça; o homem estava de sandálias. Todos nós, os motorisats, também estávamos de sandálias. Mas todas as pessoas que tinham permissão para entrar no centro comercial iam de sapatos.
Ao invés de dar meia-volta e de se ir embora (como nove em dez no lugar dele teriam feito), o homem de sandálias insurgiu-se:- Não serei por acaso um ser humano como eles?
Berrou com tanta convicção que a saliva lhe jorrou da boca como uma fonte e os joelhos lhe tremeram. Um dos motoristas soltou um assobio. Um indivíduo que estivera a barrer o recinto exterior do centro comerical pousou a vassoura e deixou-se ficar a assistir.
Por um instante, o homem à porta parecia pronto para agredir o segurança... Mas acabou por dar meia-volta e ir-se embora.
- Aquele fulano tem tomates - comentou um dos motoristas.- Se fôssemos todos assim, haveríamos de governar a Índia, e seriam eles a engraxar-nos os sapatos.
Posto isto, os motoristas regressaram ao seu círculo. A leitura da história foi retomada.
Eu observei as chaves a rodopiar na corrente. Observei o fumo a elevar-se dos cigarros. Observei a paan a atingir o chão em diagonais vermelhas.
A pior parte de ser motorista é que estamos horas e horas por nossa conta enquanto esperamos pelo patrão. Podemos passar este tempo na conversa e a coçar os tomates. Podemos ler revistas de homicídios e violações. Podemos adquirir o hábito típico dos motoristas - é uma espécie de yoga, na verdade - de enfiarmos o dedo no nariz e de nos deixarmos abstrair durante horas (deviam chamar-lhe asana do motorista entediado). Podemos esconder uma garrafa de álcool indiano no carro; o tédio tem feito de muitos motoristas honestos uns autênticos bêbados.
Contudo se o motorista vir no seu tempo livre uma oportunidade, se o aproveitar para reflectir, então a pior parte do seu trabalho transforma-se na melhor.
Nessa noite, enquanto conduzia de regresso ao apartamento, olhei pelo espelho retrovisor. O Sr. Ashok trazia uma T-shirt vestida.
Não era uma T-shirt que algum dia me desse para comprar num armazém. Era quase toda branca e sem dizeres nenhuns, só um pequeno desenho no meio. Eu teria comprado qualquer coisa muito mais garrida, toda cheia de palavras e desenhos. Bem sei o quanto o dinheiro custa a ganhar.
Foi então que, certa noite, depois de o Sr. Ashok e a Madame Pinky terem subido, eu fui ao mercado da localidade. Ao clarão das lâmpadas amarelas despidas, havia homens agachados na rua, a vender cestas cheias de pulseiras de vidro, braceletes de metal, brinquedos, lenços para a cabeça, canetas e correntes para as chaves. Encontrei o fulano que vendua as T-shirts.
- Não - dizia eu constantemente perante cada camisola que ele me mostrava... Até que descobri uma que era toda branca com uma pequena palavra em Inglês no meio. Depois fui à procura do homem que vendia sapatos pretos.
Nessa noite, comprei a minha primeira pasta dos dentes. Comprei-a ao homem que me costumava vender a paan; tinha um negócio paralelo de pastas dos dentes que eliminavam os efeitos da paan.

BRANQUEADOR SHAKTI
COM CARVÂO e CRAVINHO PARA LIMPAR OS SEUS
DENTES
APENAS UMA RUPIA E CINQUENTA PAISAS!

Enquanto eu escovava os dedos com o dedo, reparei no que a minha mão esquerda estava a fazer: tinha deslizado para entre as minhas pernas sem eu dar por isso - como um lagarto corre furtivamente por uma parede abaixo - e já se preparava para começar a coçar.
Deixei-me ficar à espera. Mal ela se mexeu, agarreia-a com a mão direita.
Belisquei a pela grossa entre o polegar e o indicador, onde dói mais, e segurei-a assim durante um minuto. Quando a larguei, formara-se um vergão vermelho na pele da palma da minha mão.
«Bem feito.
Daqui em diante, sempre que te puseres a coçar os tomates, será este o teu castigo»
Na minha boca, a pasta dos dentes ganhara a consistência duma espuma leitosa; começou a pingar-me pelos cantos dos lábios. Cuspi-a.
Escova. Escova. Cospe.
Escova. Escova. Cospe.
Porque é que o meu pai nunca me ensinara a não coçar os tomates?
Porque é que o meu pai nunca me ensinara a lavar os dentes com espuma leitosa? Porque é que ele me educara como um autêntico animal? Porque é que todos os pobres têm de viver no meio de tanta imundície, de tanta fealdade?
Escova. Escova. Cospe.
Escova. Escova. Cospe.
Oxalá um homem pudesse cuspir o seu passado com a mesma facilidade.»

Aravind Adiga, in o Tigre Branco.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

A clareza e o sonho


"Experimento uma terrível clareza em momentos em que a natureza é tão linda.
Perco a consciência de mim mesmo e os quadros vêm como em sonho"

Vincent Van Gogh

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Desconstruções # 20 "bolas de sabão"

As bolas de sabão têm corpo de arco-íris e coração de sopro de criança.

Profecia de ilusões #15 "os miosótis"


Os miosótis são filhos da linha azul do horizonte, onde se unem o mar e o céu.

Páginas excepcionais # 14 "escrever silêncios"



"A mim. A história de mais uma das minhas loucuras. De há muito que me gabo de possuir todas as paisagens possíveis e que acho ridículas as celebridades da pintura e da poesia moderna. Amei pinturas idiotas, vãos de portas, bugigangas, panos de saltimbancos, estandartes, estampas baratas, literatura fora de moda, latim eclesiástico, livros eróticos sem caligrafia, romances antigos, contos de fadas, contos para crianças, velhas óperas, refrões ingénuos, ritmos simplicíssimos. Sonhei com cruzadas, com viagens de descobrimento das quais não existiam relatos, repúblicas sem histórias, guerras de religião sufocadas, revoluções de costumes, movimentos de raças e de continentes: acreditei pois em todas as magias.
Inventei a cor das vogais! - A negro, E branco, I vermelho, O azul, U verde - Determinei a forma e o movimento de cada consoante, e, com ritmos instintivos, procurei inventar um verbo poético acessível, custe o que custar, a todos os sentidos. Guardei a tradução. Era acima de tudo um esboço.
Escrevi os silêncios, as noites. Anotei o indizível. Firmei vertigens."

Arthur Rimbaud, in Alquimia do Verbo

Primeiras páginas III "O Imperador"


«Fecho os olhos para viver. Para matar também. E nisso sou o mais forte, pois ele só os fecha para dormir, e o próprio sono não lhe traz nenhum alívio. As suas trevas são habitadas por mortos, assombradas por crueldades. Eu sei que ele não gosta do repouso, tal como todos os grandes da terra. O repouso deixa-o a sós com a consciência e os remorsos, com o arrependimento de ter agido sempre como um poderoso, ou seja, como um homem aterrorizado pelo seu poder. Uma vez, há cinco anos atrás, encontrei-o no templo, de manhã, ainda mal acordado. Tinha os olhos vermelhos, inchados de fadiga, e não tinha coragem de os fixar nos nossos, com medo de que pudéssemos decifrar neles o nome ou as feições dos que o tinham atormentado durante a noite. Adoram-no como a um deus, mas ninguém o ama. Porque ele é o autor da Paz, em geral, e criou o maior império de todos os tempos, mas é também o autor do Medo, em particular, o medo dos outros e o seu próprio medo.
A tempestade de neve faz vibrar o tecto. O mar geme ao longe, as vagas, na noite, transformam-se em longos fantasmas de gelo. Amanhã as pessoas poderão passear sobre os peixes, e um vizinho qualquer, mais robusto do que eu, deverá abrir na espessura da neve um caminho até à minha porta, para eu poder sair.»


Vintila Horia, in Deus nasceu no exílio, Ambar.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Profecia de ilusões *16 "verticalidade"

As pedras têm alma de peregrinos.
Os peregrinos têm a verticalidade das pedras.

Páginas excepcionais # 13 "jogo de aparências"


Prova de que até os meios insuficientes, infantis mesmo, podem servir à salvação:
"Para se defender das sereias, Ulisses tapou os ouvidos com cera e se fez amarrar ao mastro. Naturalmente - e desde sempre - todos os viajantes poderiam ter feito coisa semelhante, excepto aqueles a quem as sereias já atraíam à distância; mas era sabido no mundo inteiro que isso não podia ajudar em nada. O canto das sereias penetrava tudo e a paixão dos seduzidos teria rebentado mais que cadeias e mastro. Ulisses porém não pensou nisso, embora talvez tivesse ouvido coisas a esse respeito. Confiou plenamente no punhado de cera e no molho de correntes e, com alegria inocente, foi ao encontro das sereias levando seus pequenos recursos.
As sereias entretanto têm uma arma ainda mais terrível que o canto: o seu silêncio. Apesar de não ter acontecido isso, é imaginável que alguém tenha escapado ao seu canto; mas do silêncio certamente não. Contra o sentimento de ter vencido com as próprias forças e contra a altivez daí resultante - que tudo arrasta consigo - não há na terra o que resista.
E de facto, quando Ulisses chegou, as poderosas cantoras não cantaram, seja porque julgavam que só o silêncio poderia conseguir alguma coisa desse adversário, seja porque o ar de felicidade no rosto de Ulisses - que não pensava em outra coisa a não ser em cera e correntes - as fez esquecer de todo e qualquer canto.
Ulisses no entanto - se é que se pode exprimir assim - não ouviu o seu silêncio, acreditou que elas cantavam e que só ele estava protegido contra o perigo de escutá-las. Por um instante, viu os movimentos dos pescoços, a respiração funda, os olhos cheios de lágrimas, as bocas semiabertas, mas achou que tudo isso estava relacionado com as árias que soavam inaudíveis em torno dele. Logo, porém, tudo deslizou do seu olhar dirigido para a distância, as sereias literalmente desapareceram diante da sua determinação, e quando ele estava no ponto mais próximo delas, já não as levava em conta.
Mas elas - mais belas do que nunca - esticaram o corpo e se contorceram, deixaram o cabelo horripilante voar livre no vento e distenderam as garras sobre os rochedos. Já não queriam seduzir, desejavam apenas capturar, o mais longamente possível, o brilho do grande par de olhos de Ulisses. Se as sereias tivessem consciência, teriam sido então aniquiladas. Mas permaneceram assim e só Ulisses escapou delas.
De resto, chegou até nós mais um apêndice. Diz-se que Ulisses era tão astucioso, uma raposa tão ladina, que mesmo a deusa do destino não conseguia devassar seu íntimo. Talvez ele tivesse realmente percebido - embora isso não possa ser captado pela razão humana - que as sereias haviam silenciado e se opôs a elas e aos deuses usando como escudo o jogo de aparências acima descrito."

Franz Kafka, O Silêncio das Sereias in Parábolas e Fragmentos

O sorriso


Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.


Eugénio de Andrade (1923-2005)

Páginas excepcionais # 12 "Sós"

[…]Sim, estamos sós, profun­damente sós e haverá sempre, à nossa espera, uma camada de solidão ainda mais profunda. Não há nada que possamos fazer para contrariar isto. Não, por mais espantoso que isso nos pareça, a solidão não nos devia surpreender. Pode­mos tentar virar-nos todos cá para fora, mas a única coisa que acontece nessa altura é ficarmos virados para fora e sozinhos em vez de ficarmos virados para dentro, sozinhos. Minha Merry estúpida, minha querida e estúpida Merry, ainda mais estúpida do que o teu pai, nem sequer ajuda mandar um edifício pelos ares. Estamos sozinhos com edifícios e estamos sozinhos sem eles. Não há protesto possível contra a solidão, nem todas as campanhas do mundo a favor das bombas conseguiram, sequer, beliscá-la. O explosivo mais letal feito pelo homem nem sequer é capaz de lhe tocar. […]

Philip Roth in Pastoral Americana – Ed. D.Quixote.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Profecia de ilusões *15 " anjos"

As aves são anjos em liberdade.

Desconstruções *20 "a Garça"


A garça faz patinagem artística sobre a água.

Desconstruções *19 "brincos de princesa"

Os brincos de princesa são um dote da natureza.

domingo, 29 de novembro de 2009

Fantasmas do Porto


«Se eu tivesse que destruir o Porto (com um ligeiro sopro, desses que despem as árvores e arrepiam as águas dos tanques), construía-o logo em memórias e em perdões variados. Figuras antigas, que eu quase esqueci, vinham depositar nas minhas mãos os seus tesouros de insolência e amor a ela vinculados. É muito difícil visitar os vivos. Muito difícil. Direi que do Porto tive a experiência mais molesta e nobre que nos pode acontecer: a experiência de um fantasma. Uma noite, no jardim, iluminado pelo branco clarão da luz pública, que aparecia por cima do muro como uma lua adereçada, saiu da sebe de hidrângeas uma pessoa de estatura pequena, vestida gravemente de azul escuro. Acompanhou-me durante alguns segundos, e depois apagou-se como um desenho duma folha de papel. Não inspirava medo, mas só uma impressão delicada, como se, ao materializar-se, cometesse um delito dedicado à terra que já abandonara. Ele disse: «Alguém entrou no jardim.» Mas sabia que não era gente viva. E, no entanto, algo das suas faculdades era-me familiar; uma inteligência de renúncia que já não era deste mundo, e, ao mesmo tempo, uma espécie de súplica que interpretei como uma chamada.

Desde aí o Porto tornou-se para mim mais do que um lugar, mais do que uma cidade acidentada e escura. Era um passeio de amigos abandonados ao secreto desgosto de ter perdido a ocasião da confidência, o tempo da festa que é a sinceridade mútua. O Porto pareceu-me um campo de sombras incompletas na confiança e na partilha. Por muito precária que seja a minha interpretação do Porto, ela é animada pela impressão profunda dos seus meios para reconhecer o bem e o mal - meios extintos numa sólida abdicação da fé nos homens.

Talvez me engane. Talvez isto tudo seja efeito do nevoeiro que cria imagens e estados de espírito; além de dar às flores um suor de prata. Talvez. Mas sempre que vejo perto a multidão de conhecidos, a massa inquietante de gente conhecida, parece-me que eles vão morrer sem confissão. Não confessam jamais o amor nem o ódio; nem os gostos simples, nem os gostos ousados. Nem a heroicidade, nem a ternura do que é vão - da vida, em suma. E, um dia, entram num jardim, graças ao esforço imortal dos que repetem a forma humana, e acompanham uma pessoa viva durante dois segundos, pedindo atenção.

O Porto, cidade em que os fantasmas convivem com certo instante predestinado, é o preferido, sem cálculo e até sem paixão. Eu amo-o de modo um pouco perverso, como se ama a verdade. Hei-de ser um fantasma do Porto em tempo próprio, combatendo a minha imaterialidade para me aproximar das pessoas e dar-lhes a minha fé mal cumprida. Como eles fazem comigo, os fantasmas do Porto. Que tremenda forma de amor é exprimir-se humanamente quando o humano se abandonou para sempre! Como retribuir senão entregando ao mundo essa forma de conselho que dos espaços traz a sua melancolia? Como?»


Agustina Bessa-Luís in Dicionário Imperfeito, Guimarães Editores

Páginas excepcionais # 11 "a singularidade na madrugada"


Era o momento em que a noite se separa do dia, o mundo de baixo do mundo de cima. E talvez haja outras coisas que também se separam nesses momentos. É o último segundo em que a profundidade e a altura, a luz e a escuridão, tanto universal como humana, ainda se tocam, em que os que dormem despertam em sobressalto dos seus sonhos pesados e angustiantes, os doentes suspriam de alívio, porque sentem que o inferno da noite acabou e dará lugar a um sofrimento mais ordenado; a luz e a regularidade do dia revela e separa tudo que no caos obscuro da noite era um desejo convulsivo, uma ansiedade secreta, uma paixão delirante. Os caçadores e os animais selvagens gostam desse momento. Já não é noite, mais ainda não é dia. O perfume da floresta está tão vivo e selvagem nesse instante, como se todos os seres vivos começassem a despertar no grande dormitório do mundo, como se exalassem os seus segredos e suspiros maldosos, as plantas, os animais e também os seres humanos. Levanta-se o vento tão suavemente, como quando alguém acorda e solta um suspiro, recordando-se do mundo em que tinha nascido. (...)
A esta hora, os animais selvagens dirigem-se para as fontes. A noite ainda não acabou de todo, na floresta acontecem coisas, a caça grande e a vigilância que preenche a vida dos animais selvagens, ainda não terminou, o gato-bravo está alerta, o urso devora o último pedaço da sua presa, o veado em cio recorda-se dos momentos da paixão da noite de lua, pára no meio da clareira, onde o duelo do amor decorreu, orgulhoso e encharcado, levanta a cabeça ferida na luta e olha em redor, com olhos sérios e tristes, avermelhados de excitação, como quem se lembra para sempre da paixão. (...)
É o momento em que não apenas nas profundidades da floresta, mas também na obscuridade dos corações humanos acontece algo. Porque os corações humanos também têm as suas noites, cheios de emoções tão selvagens, como os impulsos da caça que assaltam o coração do veado ou do lobo. O Sonho, o desejo, a vaidade, o egoismo, a ira, lasciva do macho, a inveja, a vingança, essas paixões ocultam-se de tal modo na noite da alma humana, como o puma, o abutre e o chacal no deserto da noite do Oriente. Existem momentos em que já não é noite e ainda não é dia no coração humano, quando as feras saem dos esconderijos sombrios da alma, quando estremece no nosso coração e se transforma em movimento na nossa mão uma paixão que formamos e domesticámos em vão durante anos, às vezes, durante muito tempo....

Sándor Márai in "As Velas Ardem Até ao Fim".

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Páginas excepcionais # 10 "armadilhas da Infância"


«- Esta noite estás com um ar meditabundo - disse o meu pai, procurando conversa.
- É capaz de ser a humidade que dilata o cérebro. É o que diz o Barceló.
- Há-de ser mais qualquer coisa. Estás preocupado com alguma coisa, Daniel?
- Não. Estava só a pensar.
- Em quê?
- Na guerra.
O meu pai assentiu com ar sombrio e sorveu a sua sopa em silêncio. Era um homem reservado e, embora vivesse no passado, quase nunca o mencionava. Eu tinha crescido na convicção de que aquela lenta procissão do pós-guerra, um mundo de quietude, miséria e rancores velados, era tão natural como a água da torneira, e que aquela tristeza muda que sangrava pelas paredes da cidade ferida era o verdadeiro rosto da sua alma. Uma das armadilhas da infância é que não é preciso compreender para sentir.
Na altura em que a razão é capaz de compreender o sucedido, as feridas no coração já são demasiado profundas. Naquela noite primitiva de Verão, caminhando por aquele anoitecer escuro e traiçoeiro de Barcelona, não conseguia apagar do pensamento o relato de Clara à volta do desaparecimento do pai. No meu mundo, a morte era uma mão anónima e incompreensível, um vendedor a domicílio que levava mães, mendigos ou vizinhos nonagenários como se se tratasse de uma lotaria do inferno. A ideia de que a morte pudesse caminhar ao meu lado, com rosto humano e coração envenenado de ódio, envergando uniforme ou gabardina, que fizesse bicha no cinema, risse nos bares ou levasse as crianças a passear no parque da Ciudadela de manhã e à tarde fizesse desaparecer alguém nas masmorras do castelo de Montjuïc, ou numa vala comum sem nome nem cerimonial, não me entrava na cabeça. Dando voltas àqilo, ocorreu-me que talvez aquele universo de cartão-pedra que eu dava por bom não fosse mais que uma decoração. Naquele anos roubados, o fim da infância, como os comboios espanhóis, chegava quando chegava.»

Carlos Ruiz Zafón, in a "A Sombra do Vento"

A santidade


"A poesia é oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível. O amor é oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra mais. Mas a Santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias".


Sophia de Mello Breyner Andresen, in Contos Exemplares, Retrato de Mónica, Figueirinhas.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Páginas excepcionais # 9 "o testemunho"


«- Caguei-me - repetiu, e desta vez desfez-se em lágrimas.
(...)
- Não digas às crianças - pediu, a olhar-me da cama com o olho que ainda via.
- Não digo a ninguém - tranquilizei-o. - Direi que está a descansar.
- Não digas à Claire.
- Não digo a ninguém. não se preocupe com isso. Podia ter acontecido a qualquer pessoa. Esqueça o assunto e descanse o mais que puder.
Corri as persanas para obscurecer o quarto, saí e fechei a porta.
(...)
Voltei em bicos de pés ao quarto onde ele dormia, ainda a respirar, ainda vivo, ainda comigo - mais um revés desencadeado por aquele homem que eu conhecera interminavelmente como meu pai. Senti-me péssimo por causa da sua heróica e vã luta para se limpar antes de eu chegar à casa de banho, e da vergonha inerente, e da desgraça que ele próprio se considerava. No entanto, agora que terminara e o meu pai dormia profundamente, pensei que não podia ter pedido nada mais para mim próprio antes de ele morrer: isto também estava certo e era assim que devia ser.
Limpamos a merda do nosso pai porque ela tem de ser limpa, mas na esteira desse limpar tudo quanto nos resta para sentir é sentido como nunca antes foi. Também não era a primeira vez que compreendia isto: depois de contornarmos a repugnância, ignorarmos a náusea e mergulharmos para além dessas fobias fortificadas como tabus resta uma tremenda quantidade de vida para acarinharmos.
(...)
Agora que o trabalho estava feito, não poderia ser mais claro para mim o motivo por que isto estava certo e como devia ser. O património era, então, isso. E não porque limpar a porcaria fosse simbólico de qualquer outra coisa, porque não era; antes por não ser nada menos nem nada mais do que a realidade vivida que era.»

Philip Roth, in "Património"

Primeiras páginas II "Um Pequeno Deus Nocturno"

Nasci nesta casa e criei-me nela. Nunca saí. Ao entardecer encosto o corpo contra o cristal das janelas e contemplo o céu. Gosto de ver as labaredas altas, as nuvens a galope, e sobre elas os anjos, legiões deles, sacundindo as fagulhas dos cabelos, agitando as largas asas em chamas. É um espectáculo sempre idêntico. Todas as tardes, porém, venho até aqui e divirto-me e comovo-me com se o visse pela primeira vez. A semana passada Félix Ventura chegou mais cedo e surpreendeu-me a rir enquanto lá fora, no azul revolto, uma nuvem enorme corria em círculos, como um cão, tentando apagar o fogo que lhe abrasava a cauda.
«Ai, não posso crer! Tu ris?!»
Irritou-me o assombro da criatura. Senti medo mas não movi um músculo. O albino tirou os óculos escuros, guardou-os no bolso interior do casaco, despiu o casaco, lentamente, melancolicamente, e pendurou-o com cuidado nas costas de uma cadeira. Escolheu um disco de vinil e colocou-o no prato do velho gira-discos. Acalanto para Um Rio, de Dora, a Cigarra, cantora brasileira que, suponho, conheceu, alguma notoriedade nos anos setenta. »

José Eduardo Agualusa, in O Vendedor de Passados

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Primeira Página I "Os Rochedos de Tundavala"


Os olhos dele continham o céu do Planalto.
Na Huíla, Serra da Chela, Dezembro, quando o azul mais fere.
No olhos dela estavam gravadas suaves ondulações da estepe
mongol. Tons sobre o castanho.
Entremos primeiro no azul.


A minha vida se resume a uma larga e sinuosa curva para o amor.
Começando por um caminho longo até Moscovo.
Não vos contarei todos os detalhes dessa viagem. Houve outras, também importantes, houve mesmo muitas viagens. Mas essa primeira viagem em arco amplo e súbitos desvios demorou mais, começou na Huíla, Sul de Angola, quando fui parido.
Nasci no meio de rochedos. A casa, porém, era de adobe.
Casa de Adobe com rochedos à volta. Título de quadro?
Era muito duro fazer uma casa de pedra, como na aldeia de Trás-os -Montes onde o meu pai tinha nascido. A minha mãe era já de algumas gerações huilanas e nascera numa mais pequena que a nossa. Por isso se construiu a de adobe, quando casaram. Os dois, com a ajuda de um serviçal muíla, chamado Kanina, nome de soba grande, ergueram a moradia, usando o barro de uma baixa sempre húmida para fazerem blocos secos ao sol.

Pepetela, in O Planalto E A Estepe

Postulado


Eu quero uma tira de papel
do meu tamanho
um metro e sessenta
nele um poema
que grita
quando alguém passa
e grita em letras negras
a exigir o impossível
coragem cívica por exemplo
essa coragem que nehum animal possui
compaixão por exemplo
solidariedade em vez de rebanho
fazer nossos através de actos
esses conceitos.

Homem
animal que tem coragem cívica
Homem
animal que conhece a compaixão
Homem animal-palavra animal-conceito
Animal
que escreve poemas
poema
que pede impossíveis
a quem passa
urgentemente
irrefutavelmente
como se apregoasse
"Bebe Coca-Cola"

Hilde Domin, in antologia Estende a mão ao milagre. Cosmorama Edições.