quinta-feira, 31 de março de 2011

terça-feira, 29 de março de 2011

Comboios de luar



Tu que dormes a noite na calçada de relento
Numa cama de chuva com lençóis feitos de vento
Tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento
És meu irmão amigo
És meu irmão
E tu que dormes só no pesadelo do ciúme
Numa cama de raiva com lençóis feitos de lume
E sofres o Natal da solidão sem um queixume
És meu irmão amigo
És meu irmão

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher

Tu que inventas ternura e brinquedos para dar
Tu que inventas bonecas e combóios de luar
E mentes ao teu filho por não os poderes comprar
És meu irmão amigo
És meu irmão

E tu que vês na montra a tua fome que eu não sei
Fatias de tristeza em cada alegre bolo-rei
Pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei
És meu irmão amigo
És meu irmão

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um Homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher



José Carlos Ary dos Santos

Foto de Sebastião Salgado.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Perguntas



...todo o cerimonial exclui a pergunta.
Não se interroga o rei no seu trono, o general na parada, o Deus na sua glória.



Agustina Bessa-Luís
Dicionário Imperfeito

quarta-feira, 9 de março de 2011

O Segredo



O segredo é indispensável numa civilização.
Se se anula o segredo, a pessoa não tem defesas.


Agustina Bessa-Luís
Dicionário Imperfeito.

Chaves


Chaves são belos e delicados objectos
mas...
temos sempre
a Venezuela.

Ja ninguém diz...e é pena


"Eu te oferecerei
pérolas de chuva
vindas de países onde
nunca chove"

Jaques Brel
Ne me quitte pas

A arte de ser feliz


Houve um tempo em que minha janela
se abria sobre uma cidade que parecia
ser feita de giz. Perto da janela havia um
pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra
esfarelada, e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre
com um balde e, em silêncio, ia atirando
com a mão umas gotas de água sobre
as plantas. Não era uma rega: era uma
espécie de aspersão ritual, para que o
jardim não morresse. E eu olhava para
as plantas, para o homem, para as gotas
de água que caíam de seus dedos
magros e meu coração ficava
completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o
jasmineiro em flor. Outras vezes
encontro nuvens espessas. Avisto
crianças que vão para a escola. Pardais
que pulam pelo muro. Gatos que abrem
e fecham os olhos, sonhando com
pardais. Borboletas brancas, duas a
duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem
personagens de Lope de Vega. Às
vezes um galo canta. Às vezes um
avião passa. Tudo está certo, no seu
lugar, cumprindo o seu destino. E eu me
sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas
felicidades certas, que estão diante de
cada janela, uns dizem que essas coisas
não existem, outros que só existem
diante das minhas janelas, e outros,

finalmente, que é preciso aprender a
olhar, para poder vê-las assim.

Cecília Meireles

terça-feira, 8 de março de 2011

Mulher


O homem faz tentativas duma obra, a mulher opera sem necessidade de completar alguma coisa. Ela é um ser completo, princípio e fim, lugar, caso, dispersão do conflito em que a própria morte se descreve, se anuncia.

Agustina Bessa-Luís
Dicionário Imperfeito.

sexta-feira, 4 de março de 2011

O baloiço do avô


O avô, dono da figueira
de uma cama fez um banco
de namorar o carinho dos netos.
Com a outra parte da cama
fez um baloiço de prender
a admiração deles
e ganhou o seu amor ao
baloiçá-los na figueira.

Pés no céu pés na terra!
Tudo roda no baloiço!

Nas tardes de Verão
o avô os netos
e os gatos de olhos de vidro
comiam figos sentados
na sombra do baloiço
fazendo alianças com
cordéis de carinho

Pés na terra pés no céu!
Tudo roda no baloiço!


PM

quinta-feira, 3 de março de 2011

Crónica de mundos desaparecidos.

Os Miguéis de Sousa.
Conheci-os aos três, desde menina.
O Miguéis "Fusa".
O Miguéis "Carbono".
E o Miguéis "Trigas".
Todos pequeninos, secos como bacalhaus, homens de pouco mais de um metro e sessenta, sapateiros, fumadores amarelecidos pelo tempo, bebedores de pernas abertas e equlibrio precário.
Viviam de quase nada. O quarteirão de aguardente de madrugada com broa de milho. E daí até escurecer o ritual de seis ou sete quarteirões, religiosamente.
Pela tarde o Miguéis "Fusa", que foi o que melhor conheci, estava com a vista enublada e os pensamentos entorpecidos, e dizia uns piropos corados, às raparigas solteiras que passavam...
Ele treinava equilibrismo todas as tardes, não só com ele próprio, mas com o seu chapéu na cruita da cabeça rala, e com o cigarro no canto esquerdo da boca, à ponta do lábio de baixo.
Quando não tinha o seu quarteirão de aguardente resmungava sozinho e fumava "quentuques" uns atrás dos outros.
Isaurinha não era mulher nem de medos nem de arreios, deixava-lhe o almoço feito e desaparecia todo o dia, na casa dos lavradores de Sousa. Dizia-se para ouvidos de bébé que ela se deitava com os lavradores, nos campos e nos montes, na Primavera. Fama que ganhou com o nascimento da sua primogénita, em solteira.
À noitinha aparecia a Isaurinha folgada e feliz, com os sacos de feijão, das batatas, das hortaliças, da "tora", nos braços cansados.
Lá vinha ela, fazer o jantar ao Miguéis, que a essa hora já nem as calças segurava.
Com a Isaurinha aprendia-se a encabar cebolas, a virar feijões e milho na eira, a descascar favas, a lavar as tripas do porco, para o fumeiro, a depenar galinhas, a fazer canjas, a talhar lombrigas, a fazer chás para abortar, que nada abortavam, a falar baixinho das coisas da "passarinha". Aprendiam-se coisas que hoje não servem para nada. Mas aprendiam-se!
Com ela também se aprendia a cheirar, e a ver ao longe, nos montes, as figuras de homem e mulher a caminho de enlaces clandestinos.
A Isaurinha apanhava fetos para chamuscar os porcos dos vizinhos, que tinham morte marcada para breve. Filosofava sobre a morte dos porcos. Que era rápida, trazia alegria à casa, e a não ser raramente, morria-se vivo e são.
Quando o Senhor Miguéis morreu ninguém pensou muito nisso. Assim, como assim, ele já estava um pouco morto, há muitos anos.
Algumas crianças tiveram pena, porque ele era os olhos presentes nas suas brincadeiras, todo o dia...
Mas quando morreu a Isaurinha, muitos anos mais tarde, as crianças que já eram jovens ou adultos tiveram um choque na esfera das possibilidades, é que a Isaurinha é imortal.