sexta-feira, 29 de junho de 2012

A fraternidade tem subtilezas




Uns governam o mundo, outros são o mundo. Entre um milionário americano, com bens na Inglaterra, ou Suíça, e o chefe socialista da aldeia — não há diferença de qualidade mas apenas de quantidade. Abaixo destes estamos nós, os amorfos, o dramaturgo atabalhoado William Shakespeare, o mestre-escola John Milton, o vadio Dante Alighieri, o moço de fretes que me fez ontem o recado, ou o barbeiro que me conta anedotas, o criado que acaba de me fazer a fraternidade de me desejar aquelas melhoras, por eu não ter bebido senão metade do vinho.

Livro do Desassossego, Bernardo Soares (Fragmento 24)

quarta-feira, 20 de junho de 2012

o verão





No verão as tardes dormem no vale.

PM

domingo, 17 de junho de 2012

o beco da agra


O beco não tem olhos de vigia.

Aquele beco lá da infância
onde as roseiras picam a correria
e as rosas, rosa fuscia, embelezam a solidão
dizem que ainda lá está.

Quanta correria travada pelas roseiras
Quanta ansiedade amansada pelas rosas, rosa fuscia,
das margens do nesgo beco.

O beco correndo como um rego seco
Ao fundo o esplendor da cerejeira
carregada de faróis vermelho escuro,
como olhos.

E os nossos olhos
esperavam a escada na cerejeira
a cesta das cerejas ao fundo
com o gancho caído
e as mãos cheias de tanta luz vermelha,
sangue de cerejeira.

O calor naquele beco
ora queimando o peito
ora queimando o ventre.

Não se adormece no beco

Nas margens não há casas coalhadas

Às vezes, pela manhã,
o leite caminhava ensonado na leiteira
até desembocar na mesa,
longe do beco.

O beco encurtava caminhos
E atravessa-nos a alma pura de criança.

PM



sábado, 16 de junho de 2012

perfume de tarde



Há um perfume de tardes no dueto estrelado das margaridas.

PM

sexta-feira, 15 de junho de 2012

As nossas mãos



Para tocar os teus segredos
eu percorro caminhos com as tuas mãos
É quando caminho
que minhas mãos te soletram meus poemas
E de mãos dadas, com ventos de feição, nos vamos construindo.

PM

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Ilusões




A busca de um país liberto.
de uma vida limpa
e de um tempo justo.

Sampaio da Nóvoa.





"Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco

Ora me lembra escravos

Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto

De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo "


Sophia de Mello Breyner 

domingo, 10 de junho de 2012

A pele aos gritos.



Amei uma pedra
densidade fria.

Nós no comboio
a pele de cada um aos gritos
com a pele do outro.
E nós no comboio
no disfarce do discurso
monossílabos secos.

O silêncio como um poço
negro
pegajoso
não ventilado.

E a pele aos gritos, eriçada
ela
a esconder a pele
a gula
a compor a voz de deserto
os cavalos do coração a galope
contra a cerca de ossos.
E a pele aos gritos, em pânico.

Ela, de fora, pedra redonda
coração de aço.

Ele, de fora, pedra de arestas vivas
coração de tigre.

E nós no comboio
o tempo a escoar-se
o relógio em passo de foguete
o comboio em super-trem
o temido destino
dela
Coimbra B.

E a pele por muito tempo aos gritos
Lua cheia sem sol.

PM


sábado, 9 de junho de 2012

Florindo cactos



Depois de tanto tempo
surpreender-te
Florindo cactos na varanda

Acabo percebendo
quantas cores a mim foram cultivadas
E faço o caminho de regresso iluminada.

PM

sexta-feira, 8 de junho de 2012

o tempo





O tempo é garras de milhafre
asas de condor
portas de ilusão.

PM

expectativa de pássaros


André Neves- blog Confabulando Imagens

Há nas árvores uma expectativa de pássaros
elas ocultam em seus braços escondidos berços

Há nas árvores uma constante de dança
em suas folhas as mil asas do vento

Há nas árvores uma mesa de banquetes
nos seus frutos ofertas do paraíso

Há nas árvores uma promessa de amor
sua carne em brasa é um convite à nudez.

PM

quinta-feira, 7 de junho de 2012

amar a lua




A dez minutos da madrugada a noite cheira
a pêssegos e gerânios.
É a essa hora que os homens amam a lua.

PM

tenho piedade.



Tenho piedade, senhor, dos homens que conduzem a sombra todos os dias.
Tenho piedade, senhor, dos homens que levam a luz, para alguns.
E, senhor, se nisso tens autoria, tenho piedade de ti!
PM

quarta-feira, 6 de junho de 2012

seiva de árvore


Tenho seiva de árvore
quando te subo
quando te desço,
nem eu lembro
se sou vento, ave
ou alguma seara onde me deitei.

PM

sexta-feira, 1 de junho de 2012

declaração inacabada dos direitos particulares das crianças


Todas as crianças têm direito a banhos no mar e a correr ao vento.
Todas as crianças têm direito a atravessar a seara e olhar as macieiras em flor.
Todas as crianças têm direito a sujar-se na lama macia que ficou da última chuvada.
Todas as crianças têm direito a ter medo do escuro.
Todas as crianças têm direito a dormir com os pais quando precisam.
Todas as crianças têm direito a comer cerejas da árvore ou ao pé dela.
Todas as crianças têm direito ao sorriso dos olhos da mãe e ao carinho das mãos do pai.
Todas as crianças têm direito a uma mãe que sabe castigar e premiar.
Todas as crianças têm direito a um pai que é autoridade e liberdade.
Todas as crianças têm direito a beijos de mãe todos os dias.
Todas as crianaçs têm direito...
PM