Devemos ser suaves, suaves, suaves uns com os outros, porque somos muito frágeis...
segunda-feira, 9 de setembro de 2013
Como se pinta um país
na velha tela espalha-se um mar antigo
reserva-se um rectângulo com uma imensa janela para o azul
dentro da janela planta-se um pinhal verde
por ordem do rei
a corôa do rectângulo pinta-se com cores estrangeiras
quando pela primeira vez se espalha a luz do dia
vira-se o pinhal para o mar
e cobrem-se as costas de fortes e muralhas
nas marés agitam-se lendas de medos e de deuses
lá dentro pinta-se um povo com três traços
de saudade
a negro
de esperança
a verde
de criatividade
a vermelho
de muitos ventos e povos
ao anoitecer escolhem-se homens que sonhem
as lendas das marés e as iluminem
com a sua loucura
no mar erguem-se velas com palavras antigas
mãe
pátria
fortuna
nas tempestades encandeia-se a miséria de dentro
e acena-se com a bandeira à saída...
PM
domingo, 8 de setembro de 2013
quando nos defraudamos
sai-nos a palavra que defrauda o ser.
e fica-nos um aviso.
um sítio de desconforto.
um sítio a evitar.
um ar rarefeito de nós.
deserto na boca. areia a picar na pele.
mais um sítio a recomendar silêncio?
no ser a necessidade de repôr-se.
atar o antes e depois da fraude.
extinguir o sentido da palavra falsa.
e esperar que se perceba que o momento não foi nosso até ao osso.
PM
sábado, 7 de setembro de 2013
Tão pouca é a vida
Tão pouca é a vida, o deslumbrado delírio da vida. No tear se tecem os fios, o desenho das rendas,a renda dos dias. Ignoro quantos, quantas tardes no fluir da paixão, quanto ouro e azul na idade das mãos, que idade no tear das mães. Foram belas também no sonho antigo, passearam entre os lírios, desatavam a cabeleira e os vestidos, iam à beira mar. José Agostinho Baptista Morrer no Sul Assírio & Alvim, 1981 |
sexta-feira, 6 de setembro de 2013
Eu tive uma amiga
Eu tive uma amiga.
via num janeiro, numa cidade fria.
não sei se ela me lembra.
eu lembro-me dela e das fugas da circunstância...
Lembro da tangerineira, que nos amava,
a fazer de conta que as tangerinas tinham o mesmo fogo para todos os olhos,
e dos risos que partilhámos com a cave da casa,
e da roupa que lavámos com as mágoas das paixões primaveris
e dos almoços de domingo onde comiamos requeijão com diospiro e o Zeca à sobremesa,
e dos futuros que inventamos debaixo da tangerineira,
e da prata que espalhámos no céu, naquela madrugada de Fevereiro, quando as cerejeiras floriram
e de como o nosso peito era um catavento que só captava tempestades.
Eu tive uma amiga.
PM
acaso
Ainda que algum de vocês tenha vindo aqui hoje por acaso, não faz mal nenhum, é isto o que faz as pessoas - ter a certeza do acaso.
Almade Negreiros.
O acaso é a lógica de Deus.
Otto Walter Friedrich
quarta-feira, 4 de setembro de 2013
Mulheres...
Uma mulher é mãe ou é sexo ou é homem.
Quando um homem como um poeta pensa numa fêmea está a pensar numa dessas três.
(...)
Não basta sair das mulheres para saber delas, nem mesmo entrar-lhes no corpo. Pode um homem entrar numa mulher sem nunca chegar a conhecê-la, para isso é preciso muito tempo e um desejo que não se apague com o dia.
Cada mulher é uma soma de parcelas sem conta, uma por cada homem passado, por cada homem querido, por cada dor, por cada filho.
Há partes que dormem até que um toque as estremeça, outras que ardem num fogo autónomo, sem que nada o alimente.
Há mulheres tabuleiro, jogos de combinações infinitas onde nenhuma estratégia garante a vitória. Jogos de toda a vida até que alguém se renda ou a luz se apague.
(...)
As mulheres belas podem ser becos e as feias também.
Ruas estreitas por onde enfiar sob o risco de não sair nunca, porque as mulheres não se acabam. Todas as mulheres são autoras discretas, responsáveis por maridos, filhos, amigos e solitários.
Nuno Camarneiro
No meu peito não cabem pássaros
D. Quixote.
sem outro intuito
terça-feira, 3 de setembro de 2013
oceano atlântico
Este azul é cor de sítio nenhum.
Um lugar que foge aos sentidos por medo e finitude.
Olha-se como não vendo, porque é tanto que não cabe em gente.
Chamar-lhe mar ou chamar-lhe céu, chamar nomes às coisas que riem de nós e de deus.
O mar inventou-nos a nós e depois a deus.
Nuno Camarneiro
No meu peito não cabem pássaros
D. Quixote.
Dormir um pouco...
Dormir um pouco — um minuto,
um século. Acordar
na crista
duma onda, ser
o lastro de espuma
que há no sono
das algas. Ou
ser apenas
a maré, que sempre
volta
para dizer: eu não morri, eu sou
a borboleta
do vento, a flor
incandescente destas águas.
Albano Martins, in "Castália e Outros Poemas"
quarta-feira, 28 de agosto de 2013
sexta-feira, 9 de agosto de 2013
o riso do vento
agitam-se na brisa como guizos
as folhas do álamo negro
verde escuro
verde claro
coração de travessura.
no folheado de verde luz
estraleja
o riso alegre do vento
PM
segunda-feira, 29 de julho de 2013
sábado, 13 de julho de 2013
sexta-feira, 12 de julho de 2013
nos olhos a saudade
Na minha aldeia há andorinhas que brincam
de vôo baixo
em tardes secas e sanguíneas.
Na minha aldeia há uma luz inesquecível
que é alegria na primeira idade
e consolo de cores nas folhas outonais.
Na minha aldeia há um rio de água lavada
nos açudes
pelas lavadeiras da memória.
Vou partir
levo no rosto luz
nos olhos água lavada
e disfarçados nos bolsos os ninhos das andorinhas
para que à noite
após o último vôo
não sintam saudades dos beirais.
PM
S/ título
procuro-te incansavelmente
como O Deus prometido
nas pedras
nos pássaros
no azul
nas estrelas
no livro fechado
no amigo recente.
Estou com os olhos pregados no horizonte
aproxima-se o pôr do sol derradeiro
espero
tudo compreender
como O Deus cumprido
e então não mais falarei
porque nada haverá para contar.
silencío
a súplica que há na fé.
PM
quinta-feira, 11 de julho de 2013
descobrir
Menino e pássaro - Simone Martins
O menino irritado gritava
- cala-te ó piça!
- cala-te ó piça!
- cala-te ó piça!
A menina/mulher
- então!?
silêncio...
agora já podes descobrir
palavras inocentes
como mãe, água, sol.
divertidas
como baloiço, bola, recreio.
palavras que fogem
como pássaro, vento, mar.
e mais tarde
palavras alegres
como festa, riso, cumplicidade.
ainda mais tarde
mas logo de seguida
palavras quentes
como pele, língua, lambe rosa.
e palavras dolorosas
como paixão, culpa, partir.
e só quando indispensável
palavras obscenas
como oportunista, poder, violência...
e nunca
palavras malditas
como ditadura, violação, escravatura...
PM
quarta-feira, 10 de julho de 2013
treinar os silêncios
Hoje espero-te
há muitas horas
podia dizer-se que estou a caminhar por dentro da tua ausência.
os transeuntes que passam
vêm a minha fé
e pensam em dar-me palavras
para escrever uma carta de amor.
uma carta onde veja as tuas asas
quando te incendeias na madrugada
ou em que visto as tuas pernas
e ardo nas tuas veias.
Mas, os transeuntes não sabem
que as palavras são uma coisa
e uma carta de amor outra
e só a labareda no coração
as pode ligar.
Hoje a tua ausência aconselha-me
a escrever cartas de amor sem destinatário
para treinar os silêncios
com que te hei-de amar.
PM
sábado, 22 de junho de 2013
quarta-feira, 8 de maio de 2013
em sua alma as águas turvas param junto à eternidade

São claras as crianças como candeias sem vento,
seu coração quebra o mundo cegamente.
E eu fico a surpreendê-las, embebido no meu poema,
pelo terror dos dias, quando
em sua alma os parques são maiores e as águas turvas param
junto à eternidade.
As crianças criam. São esses os espaços
onde nascem as suas árvores.
Enquanto as câmpanulas se purificam no cimo do fogo,
as crianças esmigalham-se.
Seu sangue evoca
a tristeza, tristeza, a tristeza
primordial.
- Enlouquecem depressa caídas no milagre. Entram
pelos séculos
entre cardumes frios, com o corpo espetado nas luzes
e o olhar infinito de quem não possui alma.
Seu grito remonta ao verão. Inspira-as
a velocidade da terra.
As crianças enlouquecem em coisas de poesia.
Escutai um instante como ficam presas
no alto desse grito, como a eternidade as acolhe
enquanto gritam e gritam.
- É-lhes dado o pequeno tempo de um sono
de onde saem
assombradas e altas. Tudo nelas se alimenta.
Dali a vida de um poema tira
por um lado apaixonamento; por outro,
purificação.
Nelas se festeja a imensidade
dos meses, a melancolia, a silenciosa
pureza do mundo.
Quem há-de pensar para as crianças, sem ter
espinhos nas vozes desertas
até ao fundo? É vendo-se aos espelhos,
no seguimento da noite,
que as crianças aparecem com o horror
da sua candura, as crianças fundamentais, as grandes
crianças vigiadoras -
cantando, pensando, dormindo loucamente.
Não há laranjas ou brasas ou facas iluminadas
que a vingança não afaste.
As crianças invasoras percorrem
os nomes - enchem de uma fria
loucura inteligente
as raízes e as folhas da garganta.
Aprendemos com elas os corredores do ar,
a iluminação, o mistério
da carne. Partem depois, sangrentas,
inomináveis. Partem de noite
noite - extremas e únicas.
- E nada mais somos do que o Poema onde as crianças
se distanciam loucamente.
seu coração quebra o mundo cegamente.
E eu fico a surpreendê-las, embebido no meu poema,
pelo terror dos dias, quando
em sua alma os parques são maiores e as águas turvas param
junto à eternidade.
As crianças criam. São esses os espaços
onde nascem as suas árvores.
Enquanto as câmpanulas se purificam no cimo do fogo,
as crianças esmigalham-se.
Seu sangue evoca
a tristeza, tristeza, a tristeza
primordial.
- Enlouquecem depressa caídas no milagre. Entram
pelos séculos
entre cardumes frios, com o corpo espetado nas luzes
e o olhar infinito de quem não possui alma.
Seu grito remonta ao verão. Inspira-as
a velocidade da terra.
As crianças enlouquecem em coisas de poesia.
Escutai um instante como ficam presas
no alto desse grito, como a eternidade as acolhe
enquanto gritam e gritam.
- É-lhes dado o pequeno tempo de um sono
de onde saem
assombradas e altas. Tudo nelas se alimenta.
Dali a vida de um poema tira
por um lado apaixonamento; por outro,
purificação.
Nelas se festeja a imensidade
dos meses, a melancolia, a silenciosa
pureza do mundo.
Quem há-de pensar para as crianças, sem ter
espinhos nas vozes desertas
até ao fundo? É vendo-se aos espelhos,
no seguimento da noite,
que as crianças aparecem com o horror
da sua candura, as crianças fundamentais, as grandes
crianças vigiadoras -
cantando, pensando, dormindo loucamente.
Não há laranjas ou brasas ou facas iluminadas
que a vingança não afaste.
As crianças invasoras percorrem
os nomes - enchem de uma fria
loucura inteligente
as raízes e as folhas da garganta.
Aprendemos com elas os corredores do ar,
a iluminação, o mistério
da carne. Partem depois, sangrentas,
inomináveis. Partem de noite
noite - extremas e únicas.
- E nada mais somos do que o Poema onde as crianças
se distanciam loucamente.
Loucamente.
Herberto Helder
Ofício Cantante
Assírio & Alvim, 2009
domingo, 28 de abril de 2013
o sítio da paisagem
A paisagem é um sítio do meu olhar.
Pode ser o país da imagem.
Ou a terra que me escapa e que o meu olhar alcança.
Ou a terra onde me escapo e o meu olhar deixa de abraçar
para se perder noutro sítio ao longe ou ao perto em particularidades...
PM
sábado, 27 de abril de 2013
A Cidade de Viés
É uma cidade no largo estuário de um rio, que nasce e morre no meio do deserto.
Os prédios são construídos sobre pequenas ilhas ou ilhéus à deriva.
As construções assentam em palafitas finíssimas e transparentes de 15 metros de altura, a contar com as cheias anuais de Abril.
Os prédios são unidos por pontes uns aos outros.
Tudo o que na cidade se faz de legal ou ilegal passa-se no topo da cidade, nos vastos pátios dos prédios, adornados com plantas de todas as cores e perfumes, num emaranhado de raízes e caules que parecem cadeias a apertar as paredes.
A cidade é bela, porém, vigiada com mil olhos colados às paredes invisíveis.
Quem quer fazer algo de proibido tem de descer ao solo da ilha, por baixo da cidade.
É aí que os amantes se amam pela primeira vez.
E é aí que pela primeira vez se apercebem como a cidade flutua sobre o rio como jardins suspensos sobre a água.
Quem no solo das ilhas olhar atento para a cidade e para o rio pode aperceber-se que a cidade avança para norte e o rio para sul.
Assim é a cidade enviesada, aquela onde todos adivinham a derrocada.
PM
segunda-feira, 8 de abril de 2013
terça-feira, 19 de março de 2013
nome muito estrangeiro
"Dava pelo nome muito estrangeiro de Amor, era
preciso chamá-lo sem voz - difundia uma colorida
multiplicação de mãos, e aparecia depois todo nu
escutando-se a si mesmo, e fazia de estátua
durante um parque inteiro, de repente voltava-se
e acontecera um crime, os jornais diziam, ele
vinha em estado completo de fotografia
embriagada, descobria-se sangue, a vítima
caminhava com uma pêra na mão, a boca estava
impressa na doçura intransponível da pêra, e
depois já se não sabia o que fazer, ele era belo
muito, daquela espécie de beleza repentina e
urgente, inspirava a mais terrível acção do
louvor, mas vinha comer às nossas mãos, e bastava
que tivéssemos muito silêncio para isso, e então
os dias cruzavam-se uns pelos outros e no meio
habitava uma montanha intensa, e mais tarde às
noites trocavam-se e no meio o que existia agora
era uma plantação de espelhos, o Amor aparecia e
desaparecia em todos eles, e tínhamos de ficar
imóveis e sem compreender, porque ele era uma
criança assassina e andava pela terra com as suas
camisas brancas abertas, as suas camisas negras e
vermelhas todas desabotoadas."
Herberto Helder, Poesia Toda
sexta-feira, 8 de março de 2013
a mínima das mãos
"O amor só se conserva quando a solidão
de cada um dos dois é respeitada
mesmo que isso exija a implacável destruição
dos que não deixariam de se destruir
se dessem um ao outro a mínima das mãos"
Ruy Belo, Encontro de Garciloso de la Vega
sábado, 16 de fevereiro de 2013
domingo, 6 de janeiro de 2013
simplesmente porque era homem...
E foi por esta época
que principiei a sentir-me deus.
Não faças confusão: era sempre, era mais que nunca
aquele mesmo homem alimentado de frutos
e de animais da terra,
restituindo ao solo os resíduos dos seus alimentos,
sacrificando ao sono a cada revolução dos astros,
inquieto até à loucura
quando lhe faltava por demasiado tempo
a cálida presença do amor.
aquele mesmo homem alimentado de frutos
e de animais da terra,
restituindo ao solo os resíduos dos seus alimentos,
sacrificando ao sono a cada revolução dos astros,
inquieto até à loucura
quando lhe faltava por demasiado tempo
a cálida presença do amor.
A minha força,
a minha agilidade física ou mental
eram cuidadosamente mantidas por uma ginástica
toda humana.
a minha agilidade física ou mental
eram cuidadosamente mantidas por uma ginástica
toda humana.
Mas que dizer senão que tudo isso era divinamente
vivido?
As ousadas experiências da juventude
tinham acabado,
assim como a sofreguidão de gozar o tempo que passa.
sentia-me sem impaciência,
seguro de mim,
tão perfeito
quanto a minha natureza me permitia,
eterno.
E compreende bem que se trata,
neste caso,
de uma concepção do intelecto:
os delírios, se este nome se lhes pode dar,
vieram mais tarde.
Era deus
simplesmente porque era homem.
marguerite yourcenar
memórias de adriano
trad. maria lamas
ulisseia
1974
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