sábado, 13 de março de 2010

Galeria de retratos*2 Manuel Latas


Não sabíamos quando vinha, nem de onde vinha.
Sabíamos que viria, grande e troante como as forças da natureza,
com sol a pino, terra em brasa ou geada de dentes.
Aparecia ao fundo da recta
onde estava implantada a minha casa,
atravancando metade da estrada.
Vestia-se de serapilheira e apertava-se de arame.
Atrás dele vinha, sem falhar, uma procissão de crianças,
em frenética algazarra.
Vinha adornado de latas.
Ia-se aproximando do seu destino como um andor.
À medida que a procissão passava,
acorriam às portas e janelas, as mulheres, as crianças e os velhos.
Era o S’ Manuel das latas que vinha ao presigo.
Chegado, alapava-se no pátio da taberna da Deveza
e arredava a pequenada.
Xô. Xôôôôôôôô.
Repousado, iniciava o ritual da desprega das latas,
as de beber, as de comer, as das moedas…
E ali ficava todo o dia como um rochedo,
sempre a ser embatido por um mar de crianças,
que o admiravam,
que dele troçavam,
que o acompanhavam até aos limites das suas pernas.
Ao fim da tarde, regressava a si,
metia pelos montes
e ia desaparecendo ao longe, como a trovoada.
Um dia,
sem aviso,
foi adorado uma última vez pelas crianças.

P.M.

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