quinta-feira, 4 de março de 2010

Castelo de Paiva (9º Aniversário)


(Conversa imaginária de um Psicoterapeuta com a única testemunha que presenciou a queda da ponte de Entre-os-Rios)

Boa tarde, Fernanda.
Boa tarde, Senhor Doutor.
Como tem passado?
Tenho frio. E o pescoço. O pescoço rígido.
Quer sentar-se?
Quer falar sobre algo, em especial, hoje?
Sim, a noite.
A mesma?
Sim. A noite de quatro de Março de 2001.
Mas é dela que falamos sempre.
Sim. Essa é a noite em que me perdi. Preciso falar dela. Esgotá-la...exorcizá-la.
Talvez me encontre...
Como assim? Ninguém se perde na noite que conhece. Nem no espaço que é seu.
Ninguém se perde na morte que não lhe pertence.
Ai perde, perde, Doutor João.
Então, conte lá.
Bem, Doutor João, contar, contar, não sei. Nem posso. Só tenho imagens desgarradas.
A Fernanda estava à porta de casa. Era noite. Esperava o marido, que fora ao lado de Penafiel. Quer continuar?
Como posso continuar, Doutor João?
A minha memória só ouve os mil gritos que saíram do autocarro. Iluminado. Inclinado sobre o abismo.
E a queda, Doutor João. A queda. Aquele baque. Aquela escuridão que me entrou na alma.
Sabe, eu estendi os braços. Ergui-os. Inúteis. Fracos braços. Fraca alma. Não consegui parar o autocarro. E rezei! Se rezei…
Oiça, Fernanda, ninguém conseguia parar o autocarro. Nem a senhora. Nem nós todos. Nem a reza. Talvez, nem Deus.
Ó Senhor Doutor, rezei e corri. Corri até ao início da ponte. Não queria acreditar. Ainda não quero acreditar.
Quando lá cheguei era verdade. Metade da Ponte já lá não estava. A ponte que me viu nascer.
A ponte é como o sol. Pensamos que está lá para sempre, todas as manhãs.
E o autocarro engolido. Engolido, por aquela água em atropelo.
Senhor Doutor… já viu o tamanho de um autocarro?
Está a ver um autocarro?
Engolido. Nada à vista.
Os gritos. Os gritos estilhaçaram-me a alma.
Foi por isso, Doutor João, que eu não tive ânimo para segurar o autocarro.
Então, Fernanda. Acha possível segurar um autocarro em queda?
...não, senhor Doutor.
Mas eu quis tanto parar aquele autocarro. Salvar as crianças e as mães delas. Arrancar aqueles gritos do fundo da água. Eu ergui os braços, Senhor Doutor. Eu ergui-os. Eu empurrei o autocarro para o Céu. E Deus não o agarrou!
Ora, aí está, nem Deus pôde agarrá-lo...
Sabe, Senhor Doutor, nos dias que se seguiram houve muito barulho. Até no quintal de casa tinha gente. Fotógrafos. Televisões. Rádios.
Como aquela gente fala!
Eu só queria silêncio. Eu queria os meninos. Ai, a dor de perder os meninos, que nunca pude abraçar…
Diga-me, no Verão passado foi à esplanada sobre o Rio Douro?
Fui com a minha irmã e a minha filha.
E descontraiu-se? Brincou com a sua filha?
A minha irmã e a minha filha andaram de barco e nadaram no rio.
E a senhora?
Eu, senhor Doutor? Eu estou perdida naquele rio. É dentro dele que hei-de encontrar-me, quando arranjar coragem…
Conte-me um episódio da sua vida, nos últimos tempos, que a tenha deixado satisfeita.
Satisfeita. Satisfeita? Mesmo satisfeita?
Fui à feira, a Castelo de Paiva, e comprei rosas brancas. Trouxe um cesto de rosas brancas. Umas compradas e outras dadas pelas floristas, que já me conhecem.
- Aquela é a testemunha da Ponte.
E apontam-me!
Eram tantas, as rosas, e tão lindas, parecia que falavam comigo. Pareciam querer sossegar-me. Eram as almas dos meninos a sossegar-me. Fui deitá-las à água no dia 1 de Novembro.
Fique tranquila. Pronto… a sua filha como vai, agora que o pai se foi embora?
Vai bem.
Eu. Bem…, mais a minha irmã. Ela não deixa que a filha perceba que eu ando perdida.
Mas, a Fernanda não anda perdida. Anda apenas à procura de um caminho arejado, onde caiba esse acontecimento doloroso que veio ter consigo à porta.
No início do Verão tínhamos concordado em mudar de casa. Como andam os preparativos para a mudança?
A minha irmã já tratou de tudo. Ela e a minha filha já vão à casa nova.
E a Fernanda quando lá vai? Quando se muda?
Eu hei-de ir. Hei-de mudar-me, Doutor João.
Deixe que se calem os gritos dos meninos. Que a minha alma saia do rio.
Deixe o tempo enfraquecer a memória…
Hei-de ir, hei-de ir...

P.M.

3 comentários:

AugustoMaio disse...

obrigado pela memória.

e só nos perdemos naquilo que conhecemos.

Petra Maré disse...

Concordo. Mas há perder e perder.
O A.M. fala do doce perder.

Hana disse...

Olá passeando acabei encontrando seu cantinho e gostei muito, já estou seguindo, vou vir sempre que tivr um tempinho!
venha me visitar em meu cantinho dda harmonia quando puder!
com carinho.
Hana