terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Páginas excepcionais #18 "íntimas colinas"

- Diz-me onde é que ela estava quando a viste pela última vez - disse eu.
Ele apontou.
- Estava a subir aquela colina além.
Deixei-o ali e caminhei cerca de quatrocentos metros até ao topo da colina. Fazia tanto frio que tive de levantar as golas do casaco para proteger o pescoço. Sob os meus pés, a terra era uma mistura de areia castanha grossa e pequenas pedras, o leito de um qualquer mar pré-histórico. Para lá da colina havia outras colinas semelhantes, centenas delas, sucedendo-se até ao infinito. A terra arenosa não mostrava pegadas, nenhum sinal de que alguém tivesse passado por ali. Continuei a avançar, cambaleando sobre o solo traiçoeiro que cedia ligeiramente sob o meu peso e resvalava em torrões de areia cinzenta.
Após cerca de três quilómetros, sentei-me a descansar numa pedra branca e redonda. Estava a suar, apesar do frio cortante. A norte, a lua começara a descer. Já devia passar das três da madrugada. Tinha avançado a um ritmo regular, mas lentamente e ao ziguezagues. As colinas e os montículos de terra estendiam-se até ao horizonte negro, cobertos pior cactos, artemísias e feios arbustos cujo nome desconhecia.
Lembrei-me de ter visto mapas daquela região. Não havia estradas, nem aldeias, nem vida humana entre este e o outro extremo do deserto, nada além de terra estéril que se estendia por mais de centena e meia de quilómetros. levantei-me e continuei a avançar. Estava entorpecido de frio, mas o suor escorria-me pelo corpo. A leste, o horizonte acinzentado iluminou-se, assumiu um tom rosado, depois vermelho, até que por fim a bola de fogo gigante surgiu por detrás das colinas escuras. Sobre a desolação da terra reinava uma indiferença suprema, a simples rotina do novo dia que se sucedia à noite, e, contudo, a intimidade secreta daquelas colinas e o seu mistério consolador e mudo tornavam a morte um facto de pequena importância. Podíamos morrer, mas o deserto guardaria o segredo da nossa morte, sobreviver-nos-ia, cobriria a nossa memória com vento, calor e frio eternos.
Era escusado continuar. Como podia eu encontrá-la? E porque havia de a procurar, se tudo o que podia propor-lhe era um regresso à selva brutal que a destruíra? Voltei para trás, tristemente, sob a luz do alvorecer. Camilla pertencia agora às colinas - que elas a protegessem! Deixa-a regressar à solidão das íntimas colinas. Que viva com as pedras a céu aberto, com o vento a soprar-lhe nos cabelos até ao fim. Deixa-a ir em paz.
O sol já ia alto quando alcancei a cabana. O calor começava a apertar. Sammy estava parado sob o umbral da porta.
- Encontraste-a? - perguntou.
Não lhe dei resposta. Estava exausto. Ele fitou-me por alguns momentos e depois recolheu-se. Ouvi-o trancar a porta. O calor tremeluzia sobre o vasto horizonte do Mojave. Dirigi-me ao Ford, levantei do assento o exemplar do meu livro e escrevi na primeira página:

Para Camilla, com amor,
Arturo

De livro na mão, avancei uns cem metros pela desolação adentro, no sentido sudeste. Lancei o livro pelo ar, com toda a força, na direcção que ela tinha tomado. Depois meti-me no carro, liguei o motor e regressei a Los Angeles.

John Fante in Pergunta ao Pó

3 comentários:

AugustoMaio disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
AugustoMaio disse...

Um autor muito esquecido e tardiamente descoberto, por todo o lado, mais neste País lento. Há um filme sobre este belo livro, igualmente melancólico. Bela lembrança, belo "post".

Petra Maré disse...

Obrigada, caro Augusto.
Também tenho essa impressão, de que o país é lento, mas há sempre alguns mais atentos...