Devemos ser suaves, suaves, suaves uns com os outros, porque somos muito frágeis...
segunda-feira, 31 de dezembro de 2012
domingo, 30 de dezembro de 2012
convicção
“Uma pessoa com convicção tem a
força equivalente a 100 mil que tenham interesses apenas.”
John Stuart Mill.
azul descoberto
céu claro dentro do
nevoeiro branco
nos montes
fumo de madeira cheia de sol
no cinzento claro deste dia
espero o azul
o apartar do fumo
o sol
é inverno nos montes...
PM
sábado, 29 de dezembro de 2012
Da memória que fica delas
Em bando passam aves e eu voando vou com elas
Mas assim que aterro e quebro as asas
Recolho-me à sombra, que não das aves,
Das aves não
Mas da memória que fica delas
Passam lestas chilreando leves
E minh´alma, ninfa triste em seu novelo,
Fica só daqui a vê-lo
O bando não
Mas o que fica de passarem aves.
Arménio Vieira
sexta-feira, 28 de dezembro de 2012
quinta-feira, 27 de dezembro de 2012
Limites

Quem disse alguma vez: até aqui a sede,
até aqui a água?
Quem disse alguma vez: até aqui o ar,
até aqui o fogo?
Quem disse alguma vez: até aqui o amor,
até aqui o ódio?
Quem disse alguma vez: até aqui o homem,
até aqui não?
Só a esperança tem os joelhos nítidos.
Sangram.
Juan Gelman
quarta-feira, 26 de dezembro de 2012
lavar o mundo
hoje chove muito, muito,
dir-se-ia que estão a lavar o mundo.
o meu vizinho do lado vê a chuva
e pensa em escrever uma carta de amor /
uma carta à mulher com quem vive
e lhe faz a comida e lava a roupa e faz amor com ele
e se parece com a sua sombra /
o meu vizinho nunca diz palavras de amor à mulher /
entra em casa pela janela e não pela porta /
por uma porta entra-se em muitos sítios /
no trabalho, no quartel, na prisão,
em todos os edifícios do mundo /
mas não no mundo /
nem numa mulher /nem na alma /
quer dizer /
nessa caixa ou nave ou chuva que chamamos assim /
como hoje / que chove muito /
e me custa escrever a palavra amor /
porque o amor é uma coisa e a palavra amor é outra coisa /
e só a alma sabe onde as duas se encontram /
e quando / e como /
mas que pode a alma explicar /
por isso o meu vizinho tem tempestades na boca /
palavras que naufragam /
palavras que não sabem que há sol porque nascem e morrem na
mesma noite em que ele amou /
e deixam cartas no pensamento que ele nunca escreverá /
como o silêncio que existe entre duas rosas /
ou como eu / que escrevo palavras para regressar
ao meu vizinho que vê a chuva /
e à chuva /
ao meu coração desterrado /
juan gelman
“no avesso do mundo”
trad. colectiva da casa de mateus
revista por ana luísa amaral
quetzal
1998
quinta-feira, 1 de novembro de 2012
como uma vela
queria que me acompanhasses
vida fora
como uma vela
que me descobrisse o mundo
mas situo-me no lado incerto
onde bate o vento
e só te posso ensinar
nomes de árvores
cujo fruto se colhe numa próxima estação
por onde os comboios estendem
silvos aflitos
ana paula inácio
poetas sem qualidades
averno
2002
Um fio invisível
Não é feliz, a vida em Raissa. Pelas ruas a gente caminha torcendo as mãos, ralha com as crianças que choram, apoia-se aos parapeitos sobre o rio de cabeça nas mãos, de manhã acorda de um mau sonho e começa logo outro. Entre as bigornas onde a toda a hora se esmaga os dedos com o martelo ou se pica com a agulha, ou nas colunas de números todos tortos dos registos dos negociantes e dos banqueiros, ou diante das filas de copos sobre o zinco dos balcões das tabernas, ainda bem que as cabeças baixas nos poupam a olhares turvos. Dentro das casas é pior, e nem é preciso entrar lá para sabê-lo: de Verão as janelas ressoam de brigas e de pratos quebrados.
E no entanto, em Raissa, a cada momento há uma criança que de uma janela ri a um cão que saltou sobre um alpendre para morder um bocado de massa que caiu a um pedreiro que do alto do andaime exclamou: - Alegria minha, deixa-me pintar-te! — a uma jovem taberneira que atravessa a pérgula com um prato de carne nas mãos, contente por servi-lo ao fabricante de chapéus de chuva que festeja um bom negócio, uma sombrinha de renda branca comprada por uma grande dama para se pavonear nas corridas, enamorada de um oficial que lhe sorriu ao saltar a última barreira, feliz ele mas mais feliz ainda o seu cavalo que voava sobre os obstáculos vendo voar no céu um francolim, feliz ave liberta da gaiola por um pintor feliz por tê-la pintado pena a pena com manchinhas vermelhas e amarelas na miniatura daquela página do livro em que diz o filósofo: «Mesmo em Raissa, cidade triste, corre um fio invisível que liga um ser vivo a outro por um instante e a seguir se desfaz, e depois torna a estender-se entre pontos em movimento desenhando novas rápidas figuras de modo que a cada segundo a cidade infeliz contém uma cidade feliz que nem sequer sabe que existe».
Italo Calvino
as cidades invisíveis- As cidades ocultas. 2.
trad. josé colaço barreiros
teorema
segunda-feira, 1 de outubro de 2012
O Outono e a seguir algo de escuro...
O Outono come da minha mão a sua folha:
Somos amigos.
Somos amigos.
Tiramos às nozes a casca do tempo e ensinamo-lo a andar.
O tempo regressa de novo à casca.
No espelho é Domingo.
No sonho dorme-se.
A boca fala verdade.
O meu olhar desce até ao sexo dos amantes,
Olhamo-nos.
Dizemos algo de escuro.
Amamo-nos como papoila e memória.
Dormimos como vinho nas conchas,
Ou o mar no brilho-sangue da Lua.
Ficamos abraçados à janela, olham para nós da rua.
É tempo que se saiba!
É tempo que a pedra se decida a florir
Que ao desassossego palpite um coração.
É tempo que seja tempo.
É tempo.
(Paul Celan)
sexta-feira, 29 de junho de 2012
A fraternidade tem subtilezas
Uns governam o mundo, outros são o mundo. Entre um milionário americano, com bens na Inglaterra, ou Suíça, e o chefe socialista da aldeia — não há diferença de qualidade mas apenas de quantidade. Abaixo destes estamos nós, os amorfos, o dramaturgo atabalhoado William Shakespeare, o mestre-escola John Milton, o vadio Dante Alighieri, o moço de fretes que me fez ontem o recado, ou o barbeiro que me conta anedotas, o criado que acaba de me fazer a fraternidade de me desejar aquelas melhoras, por eu não ter bebido senão metade do vinho.
Livro do Desassossego, Bernardo Soares (Fragmento 24)
quarta-feira, 20 de junho de 2012
domingo, 17 de junho de 2012
o beco da agra
O beco não tem olhos de vigia.
Aquele beco lá da infância
onde as roseiras picam a correria
e as rosas, rosa fuscia, embelezam a solidão
dizem que ainda lá está.
Quanta correria travada pelas roseiras
Quanta ansiedade amansada pelas rosas, rosa fuscia,
das margens do nesgo beco.
O beco correndo como um rego seco
Ao fundo o esplendor da cerejeira
carregada de faróis vermelho escuro,
como olhos.
E os nossos olhos
esperavam a escada na cerejeira
a cesta das cerejas ao fundo
com o gancho caído
e as mãos cheias de tanta luz vermelha,
sangue de cerejeira.
O calor naquele beco
ora queimando o peito
ora queimando o ventre.
Não se adormece no beco
Nas margens não há casas coalhadas
Às vezes, pela manhã,
o leite caminhava ensonado na leiteira
até desembocar na mesa,
longe do beco.
O beco encurtava caminhos
E atravessa-nos a alma pura de criança.
PM
sábado, 16 de junho de 2012
sexta-feira, 15 de junho de 2012
As nossas mãos
Para tocar os teus segredos
eu percorro caminhos com as tuas mãos
É quando caminho
que minhas mãos te soletram meus poemas
E de mãos dadas, com ventos de feição, nos vamos construindo.
PM
quarta-feira, 13 de junho de 2012
Ilusões
de uma vida limpa
e de um tempo justo.
Sampaio da Nóvoa.
"Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco
Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis
Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre
Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome
E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada
Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo "
Sophia de Mello Breyner
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco
Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis
Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre
Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome
E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada
Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo "
Sophia de Mello Breyner
domingo, 10 de junho de 2012
A pele aos gritos.
Amei uma pedra
densidade fria.
Nós no comboio
a pele de cada um aos gritos
com a pele do outro.
E nós no comboio
no disfarce do discurso
monossílabos secos.
O silêncio como um poço
negro
pegajoso
não ventilado.
E a pele aos gritos, eriçada
ela
a esconder a pele
a gula
a compor a voz de deserto
os cavalos do coração a galope
contra a cerca de ossos.
E a pele aos gritos, em pânico.
Ela, de fora, pedra redonda
coração de aço.
Ele, de fora, pedra de arestas vivas
coração de tigre.
E nós no comboio
o tempo a escoar-se
o relógio em passo de foguete
o comboio em super-trem
o temido destino
dela
Coimbra B.
E a pele por muito tempo aos gritos
Lua cheia sem sol.
PM
sábado, 9 de junho de 2012
Florindo cactos
Depois de tanto tempo
surpreender-te
Florindo cactos na varanda
Acabo percebendo
quantas cores a mim foram cultivadas
E faço o caminho de regresso iluminada.
PM
sexta-feira, 8 de junho de 2012
expectativa de pássaros
André Neves- blog Confabulando Imagens
elas ocultam em seus braços escondidos berços
Há nas árvores uma constante de dança
em suas folhas as mil asas do vento
Há nas árvores uma mesa de banquetes
nos seus frutos ofertas do paraíso
Há nas árvores uma promessa de amor
sua carne em brasa é um convite à nudez.
PM
quinta-feira, 7 de junho de 2012
amar a lua
tenho piedade.
Tenho piedade, senhor, dos homens que conduzem a sombra todos os dias.
Tenho piedade, senhor, dos homens que levam a luz, para alguns.
E, senhor, se nisso tens autoria, tenho piedade de ti!
PM
quarta-feira, 6 de junho de 2012
seiva de árvore
Tenho seiva de árvore
quando te subo
quando te desço,
nem eu lembro
se sou vento, ave
ou alguma seara onde me deitei.
PM
sexta-feira, 1 de junho de 2012
declaração inacabada dos direitos particulares das crianças
Todas as crianças têm direito a banhos no mar e a correr ao vento.
Todas as crianças têm direito a atravessar a seara e olhar as macieiras em flor.
Todas as crianças têm direito a sujar-se na lama macia que ficou da última chuvada.
Todas as crianças têm direito a ter medo do escuro.
Todas as crianças têm direito a dormir com os pais quando precisam.
Todas as crianças têm direito a comer cerejas da árvore ou ao pé dela.
Todas as crianças têm direito ao sorriso dos olhos da mãe e ao carinho das mãos do pai.
Todas as crianças têm direito a uma mãe que sabe castigar e premiar.
Todas as crianças têm direito a um pai que é autoridade e liberdade.
Todas as crianças têm direito a beijos de mãe todos os dias.
Todas as crianaçs têm direito...
PM
sexta-feira, 25 de maio de 2012
Manoel de Barros, premiado, premeia-nos com poema inédito!
Fôssemos merecidos de água, de chão, de rãs, de árvores, de brisas e de garças!
Nossas palavras não tinham lugar marcado. A gente andava atoamente em nossas origens.
Só as pedras sabiam o formato do silêncio. A gente não queria significar, mas só cantar.
A gente só queria demais era mudar as feições da natureza. Tipo assim: Hoje eu vi um lagarto lamber as pernas da manhã. Ou tipo assim: Nós vimos uma formiga frondosa ajoelhada na pedra.
Aliás, depois de grandes a gente viu que o cu de uma formiga é mais importante para a humanidade do que a Bomba Atômica.
Manoel de Barros.
Prémio de Literatura Casa da América Latina
segunda-feira, 14 de maio de 2012
É preciso não esquecer nada.
É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta
nem o fogo aceso;
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.
É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.
O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
O nosso nome, o som da nossa voz
O ritmo do nosso pulso.
O que é preciso é esquecer o dia carregado de atos,
A ideia de recompensa e de glória.
O que é preciso é ser como se já não fossemos,
vigiados pelos próprios olhos
Severos conosco, pois o resto não nos pertence.
Cecília Meireles
Reconhecimento à loucura
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terça-feira, 8 de maio de 2012
Cala-te a luz arde entre os lábios
e o amor não contempla, sempre
o amor procura, tacteia no escuro,
esta perna é tua?, é teu este braço?,
subo por ti de ramo em ramo,
respiro rente à tua boca,
abre-se a alma à língua, morreria
agora se mo pedisses, dorme,
nunca o amor foi fácil, nunca,
também a terra morre.
Eugénio de Andrade
Cala-te, a luz arde nas folhas coloridas
e o sol não queima, sempre
o sol arrefece, tacteia no outono,
esta folha é do raio vermelho?, é tua esta amarela?
Ele desce de ramo em ramo,
e respira rente à terra,
abre-se a terra ao sol, morreriam
ambos se assim não fosse, dormem,
nunca a vida foi fácil, nunca,
também a terra morre.
Glosa de Eugénio de Andrade por PM.
domingo, 8 de abril de 2012
Fui criança indo por um carreiro
Fui criança, indo por um carreiro,
a caminho do mar, mão na outra mão,
entre árvores, pedras, insectos e aves.
toda a Natureza me coube nas pupilas,
mestra de sentimentos, e eu discípula.
E se fechava os olhos, ela punia-me
com o silêncio cruel das ondas,
a mudez imerecida dos insectos,
e a distância das aves que doía.
Se os abria, tudo me rodeava,
apaziguado e meu,
mas a mão que me trazia a mão
puxava-me para a luz de cada dia.
Fiama Hasse Pais Brandão
terça-feira, 27 de março de 2012
Desejar ser
O maior apetite do homem é
desejar ser. Se os olhos veem
com amor o que não é, tem de ser.
Padre António Vieira
in Paixões Humanas.
desejar ser. Se os olhos veem
com amor o que não é, tem de ser.
Padre António Vieira
in Paixões Humanas.
domingo, 25 de março de 2012
a volta da cobra de vidro mole
O rio que fazia uma volta atrás da nossa casa era a
imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás
de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta que o
rio faz por trás de sua casa se chama enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que
fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.
Manoel de Barros
O livro das ignorãças
Uma Didática da Invenção
quinta-feira, 8 de março de 2012
O que gostaria de escrever...
Não creias, Lídia, que nenhum estio
Por nós perdido possa regressar
Oferecendo a flor
Que adiámos colher.
Cada dia te é dado uma só vez
e no redondo círculo da noite
Não existe piedade
Para aquele que hesita.
Mais tarde será tarde e já é tarde.
O Tempo apaga tudo menos esse
Longo indelével rasto
Que o não-vivido deixa.
Não creias na demora em que te medes.
Jamais se detém Kronos cujo passo
Vai sempre mais à frente
Do que o teu próprio passo.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Obra Poética.
quinta-feira, 1 de março de 2012
março
...mas reparem no vento de março desdobrando os freixos e
na voz de gente da erva
desejosa que a compreendamos...
António Lobo Antunes
Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra No Mar?
sábado, 4 de fevereiro de 2012
Nestes dias de primavera, que não tarde estão aí.....
Um olhar distraído pela janela
Que iremos nós fazer nestes dias de primavera, que não tarde estão aí? hoje de manhã o céu estava cinzento, mas, se agora formos à janela, temos uma suspresa e encostamos a cara ao fecho.
Lá em baixo, vemos a luz do sol que já se está a pôr, no rosto da rapariguinha que passa, olhando em volta, e ao mesmo tempo vemos a sombra do homem que vem atrás dela, apressado.
No momento seguinte, já o homem passou e o rosto da criança é todo luz.
Franz Kafka, Parábolas e Fragmentos.
quinta-feira, 19 de janeiro de 2012
um sorriso luz
Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso,
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.
Eugénio de Andrade (19.01.1923-13.06.2005)
sexta-feira, 13 de janeiro de 2012
olhares
Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo.
Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.
Sophia de mello Breyner Andresen
Coral
Esta vista de mar, solitariamente, dói-me.
Apenas dois mares, dois sóis, duas luas
me dariam riso e bálsamo.
A arte da natureza pede o amor em dois olhares.
Fiama Hasse Pais Brandão
As Fábulas.
o tempo
Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio.
E suportar é o tempo mais comprido.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Coral. Obra Poética.
Se você não demorar muito
posso esperá-lo por toda a minha vida.
Oscar Wilde
Quem me roubou o tempo que era um
quem me roubou o tempo que era meu
o tempo todo inteiro que sorria
onde o meu Eu foi mais limpo e verdadeiro
e onde por si mesmo o poema se escrevia.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Poemas dispersos.Obra Poética
entre mãos
Há coisas conhecidas e coisas desconhecidas;
entre elas, ficam as portas.
William Blake
Só me conhece quem me sentiu as mãos.
João Pedro Grabato Dias
quinta-feira, 12 de janeiro de 2012
Mãe. Uma vida inteira.
-Mãe
comigo a pensar
- quem sou eu?
- quem é o eu que diz que sou eu?
eu antes do meu marido não necessitava de perguntar quem era
dado que eu era eu, nenhuma porção minha fora de mim como agora,
nenhuma porção
- Mãe
e eu
- O que é mãe?
António Lobo Antunes
Eu Hei-de Amar uma Pedra
Tão estranho carregar uma vida inteira no corpo,
e ninguém suspeitar dos traumas,
das quedas, dos medos, dos choros"
Caio Fernandes Abreu
Cartas
segunda-feira, 2 de janeiro de 2012
os nossos janeiros
...hei-de reconhecer os janeiros
(dúzias de janeiros prometo)
pela pressa das nuvens,
chegue comigo à janela, dê-se conta,
perceba...
António Lobo Antunes
Eu Hei-de Amar Uma Pedra
gosto / não gosto
gosto dos meus filhos. gosto de mim. gosto do P. gosto de palavras. gosto de poesia. gosto do mar. gosto de caminhar. gosto de cozinhar. gosto do cheiro a terra molhada. gosto da madrugada. gosto de dormir a "siesta". não gosto de impostores. não gosto de oportunistas. não gosto de pessoas falsas. não gosto de invejosos. gosto de flores de laranjeira. não gosto de cortar flores. gosto de limoeiros. gosto do aroma das "caneleiras". gosto do luar de janeiro. gosto de disputar corridas com a Lua. gosto de dormir. gosto de tomar pequeno almoço na cama. gosto de chupar caroços de nêsperas. gosto de sopa. gosto de pêssegos. gosto de melão. gosto de cerejas. gosto de mãos. gosto de sorrisos. não gosto de "públicas virtudes". gosto de "vícios privados". gosto de fado. gosto de Portugal. gosto de África. gosto do Brasil. não gosto da Alemanha. não gosto de máfias. gosto de Vladivostok. gosto do Expresso do Oriente. gosto do "caracter" dos gatos. não gosto de "donos". odeio violadores. não gosto de nulidades. não gosto de porco. gosto de peixe. gosto de saladas. não gosto de Kiwi. gosto de laranjas. gosto de ananás. gosto de papaia. gosto de manga. gosto de banana. gosto da maçã e do etc. não gosto de doces. não gosto de salgado. não gosto de fígado. não gosto de fritos. não gosto de massa. não gosto de coca-cola. não gosto de refrigerantes. gosto de água. gosto de arroz. gosto de pão. gosto da primavera. gosto de aves. gosto do canto das aves. gosto de raposas. gosto do fogo da lareira. gosto de ar frio. gosto do azul. gosto de neve. não gosto de chuva. não gosto de lixo. não gosto de dias pequenos e escuros. gosto do vento. gosto do Outono de setembro e outubro. não gosto de "línguas de trapo". não gosto de intrigas. não gosto de corruptos. não gosto de adictos. não gosto de tabaco. gosto de livros. gosto da Lua. gosto das estrelas. não gosto de pornografia. não gosto de escravatura. não gosto de exploração. não gosto de injustiças. não gosto de estatísticas. gosto de filo/sofia. gosto de literatura. gosto de música. gosto de Brel. gosto de Caetano Veloso. não gosto de "bruxas". não gosto de circo. não gosto de palhaços. não gosto de Bancos. não gosto do "Capital". não gosto da "Crise". gosto de ovo estrelado. gosto de nozes. gosto de chocolate. gosto do Douro. gosto do Porto. gosto de Coimbra. gosto de branco. gosto de "África Minha". gosto de "Um Eléctrico Chamado Desejo". gosto do "Esplendor na Relva". não gosto do "Último Tango em Paris" mas, gostei de ver. gosto da "Insustentável Leveza do Ser". gosto de Steinbeck. gosto de Dostoiévski. gosto de Italo Calvino. não gosto de "escritores" que escrevem livros "ao molho". não gosto de monarquias. não gosto de ditadores, mesmo mortos. não gosto de políticos. não gosto de pessoas "vítima". não gosto das "prima donna". gosto de obras prima. gosto do natal. gosto de cadeiras. gosto de casas. gosto de chaises longue. não gosto de gel de duche. não gosto de anéis. não gosto de cintos. não gosto de collants. gosto de conduzir. gosto de brincos. gosto de vestidos. gosto de casacos. gosto de saltos altos. gosto de esfoliantes. gosto de sabonetes.
domingo, 1 de janeiro de 2012
Urbi et Orbi por Pessoa
VIII
Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas...
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou –
«Se é que ele as criou, do que duvido» –
«Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres.»
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?
O Guardador de Rebanhos (trecho)
Alberto Caeiro
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