sábado, 4 de junho de 2011

Es Ser


Ele não fala. Quer dizer, não fala a mesma linguagem que os homens. Mas Lalla ouve a voz dele no interior dos seus ouvidos, e ele diz com a sua linguagem coisas muito belas que lhe perturbam o interior do seu corpo, que a fazem arrepiar-se. Talvez ele fale com o ruído ligeiro do vento que vem do fundo do espaço, ou então com o silêncio entre cada sopro de vento. Talvez fale com as palavras da luz, com as palavras que explodem em chuva de faíscas, sobre as lâminas das pedras, as palavras da areia, as palavras dos calhaus que se esboroam em pó duro, e também as palavras dos escorpiões e das serpentes que deixam os seus rastos ligeiros na poeira. Ele sabe falar com todas essas palavras e o olhar salta de uma pedra para a outra, vivo como um animal, vai num ápice até ao horizonte, sobe a direito no céu, plana mais alto que as aves.
Lalla gosta de vir aqui, ao planalto de pedra branca, para ouvir essas palavras secretas. Ela não conhece aquele a quem chama Es Ser, não sabe quem ele é, nem de onde vem, mas gosta de o encontrar naquele lugar, porque ele traz consigo, no seu olhar e na sua linguagem, o calor das terras de dunas e de areia, das regiões sem árvores e sem água.
Mesmo quando Es Ser não vem, é como se ela pudesse ver com o olhar dele. É difícil de compreender, porque é um pouco como num sonho, como se Lalla não fosse inteiramente ela própria, como se tivesse entrado no mundo que está do outro lado do olhar do homem azul.
Então aparecem as coisas belas e misteriosas. Coisas que ela nunca viu noutro lugar, que a perturbam e inquietam. Ela vê a extensão de areia cor de oiro e de enxofre, imensa, semelhante ao mar, às grandes ondas imóveis. Nessa extensão de areia, não se avista ninguém, não há uma árvore, uma erva, nada senão a sombra das dunas que se espreguiçam, que se tocam, que formam lagos ao crepúsculo. Aqui, tudo é semelhante, e é como se ela estivesse ao memso tempo aqui, e depois mais longe, lá onde o seu olhar poisa ao acaso, depois ainda noutro lugar, muito próximo do limite entre a terra e o céu. As dunas movem-se sob o seu olhar, lentamente, afastando os seus  dedos de areia. Há riachos de oiro que correm no próprio lugar, no fundo dos vales tórridos. Há ondulações duras, cozidas pelo calor terrível do sol, e grandes praias brancas de curvatura perfeita, imóveis perante o mar de areia vermelha. A luz rutila e escorre por toda a parte, a luz que nasce de todos os lados ao mesmo tempo, a luz da terra, do céu e do sol. No céu, não há fim. Apenas a bruma seca que ondula junto do horizonte, quebrando reflexos, dançando como ervas de luz - e a poeira ocre e rosa que vibra no vento frio, que sobe para o centro do céu.
Tudo isso é estranho e longínquo, embora pareça familiar. Lalla vê a sua frente, como com os olhos de um outro, o grande deserto onde a luz resplandece. Sente na pele o bafo do vento do sul, que ergue as nuvens de areia, sente sob os pés nus a areia escaldante das dunas. Sente sobretudo, por cima dela, a imensidade do céu vazio, do céu sem sombra onde brilha o Sol puro.
Então, durante muito tempo, deixa de ser ela própria; torna-se outra pessoa, distante, esquecida. Vê outras formas, silhuetas de crianças, homens, mulheres, cavalos, camelos, rebanhos de cabras; vê a forma de uma cidade, um palácio de pedra e de argila, muralhas de lama de onde saem bandos de guerreiros. Vê isso, pois não é um sonho, mas a recordação de uma outra memória em que ela entrou sem o saber.

DESERTO
J.M.G. Le Clézio

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