quinta-feira, 3 de março de 2011

Crónica de mundos desaparecidos.

Os Miguéis de Sousa.
Conheci-os aos três, desde menina.
O Miguéis "Fusa".
O Miguéis "Carbono".
E o Miguéis "Trigas".
Todos pequeninos, secos como bacalhaus, homens de pouco mais de um metro e sessenta, sapateiros, fumadores amarelecidos pelo tempo, bebedores de pernas abertas e equlibrio precário.
Viviam de quase nada. O quarteirão de aguardente de madrugada com broa de milho. E daí até escurecer o ritual de seis ou sete quarteirões, religiosamente.
Pela tarde o Miguéis "Fusa", que foi o que melhor conheci, estava com a vista enublada e os pensamentos entorpecidos, e dizia uns piropos corados, às raparigas solteiras que passavam...
Ele treinava equilibrismo todas as tardes, não só com ele próprio, mas com o seu chapéu na cruita da cabeça rala, e com o cigarro no canto esquerdo da boca, à ponta do lábio de baixo.
Quando não tinha o seu quarteirão de aguardente resmungava sozinho e fumava "quentuques" uns atrás dos outros.
Isaurinha não era mulher nem de medos nem de arreios, deixava-lhe o almoço feito e desaparecia todo o dia, na casa dos lavradores de Sousa. Dizia-se para ouvidos de bébé que ela se deitava com os lavradores, nos campos e nos montes, na Primavera. Fama que ganhou com o nascimento da sua primogénita, em solteira.
À noitinha aparecia a Isaurinha folgada e feliz, com os sacos de feijão, das batatas, das hortaliças, da "tora", nos braços cansados.
Lá vinha ela, fazer o jantar ao Miguéis, que a essa hora já nem as calças segurava.
Com a Isaurinha aprendia-se a encabar cebolas, a virar feijões e milho na eira, a descascar favas, a lavar as tripas do porco, para o fumeiro, a depenar galinhas, a fazer canjas, a talhar lombrigas, a fazer chás para abortar, que nada abortavam, a falar baixinho das coisas da "passarinha". Aprendiam-se coisas que hoje não servem para nada. Mas aprendiam-se!
Com ela também se aprendia a cheirar, e a ver ao longe, nos montes, as figuras de homem e mulher a caminho de enlaces clandestinos.
A Isaurinha apanhava fetos para chamuscar os porcos dos vizinhos, que tinham morte marcada para breve. Filosofava sobre a morte dos porcos. Que era rápida, trazia alegria à casa, e a não ser raramente, morria-se vivo e são.
Quando o Senhor Miguéis morreu ninguém pensou muito nisso. Assim, como assim, ele já estava um pouco morto, há muitos anos.
Algumas crianças tiveram pena, porque ele era os olhos presentes nas suas brincadeiras, todo o dia...
Mas quando morreu a Isaurinha, muitos anos mais tarde, as crianças que já eram jovens ou adultos tiveram um choque na esfera das possibilidades, é que a Isaurinha é imortal.