«Se eu tivesse que destruir o Porto (com um ligeiro sopro, desses que despem as árvores e arrepiam as águas dos tanques), construía-o logo em memórias e em perdões variados. Figuras antigas, que eu quase esqueci, vinham depositar nas minhas mãos os seus tesouros de insolência e amor a ela vinculados. É muito difícil visitar os vivos. Muito difícil. Direi que do Porto tive a experiência mais molesta e nobre que nos pode acontecer: a experiência de um fantasma. Uma noite, no jardim, iluminado pelo branco clarão da luz pública, que aparecia por cima do muro como uma lua adereçada, saiu da sebe de hidrângeas uma pessoa de estatura pequena, vestida gravemente de azul escuro. Acompanhou-me durante alguns segundos, e depois apagou-se como um desenho duma folha de papel. Não inspirava medo, mas só uma impressão delicada, como se, ao materializar-se, cometesse um delito dedicado à terra que já abandonara. Ele disse: «Alguém entrou no jardim.» Mas sabia que não era gente viva. E, no entanto, algo das suas faculdades era-me familiar; uma inteligência de renúncia que já não era deste mundo, e, ao mesmo tempo, uma espécie de súplica que interpretei como uma chamada.
Desde aí o Porto tornou-se para mim mais do que um lugar, mais do que uma cidade acidentada e escura. Era um passeio de amigos abandonados ao secreto desgosto de ter perdido a ocasião da confidência, o tempo da festa que é a sinceridade mútua. O Porto pareceu-me um campo de sombras incompletas na confiança e na partilha. Por muito precária que seja a minha interpretação do Porto, ela é animada pela impressão profunda dos seus meios para reconhecer o bem e o mal - meios extintos numa sólida abdicação da fé nos homens.
Talvez me engane. Talvez isto tudo seja efeito do nevoeiro que cria imagens e estados de espírito; além de dar às flores um suor de prata. Talvez. Mas sempre que vejo perto a multidão de conhecidos, a massa inquietante de gente conhecida, parece-me que eles vão morrer sem confissão. Não confessam jamais o amor nem o ódio; nem os gostos simples, nem os gostos ousados. Nem a heroicidade, nem a ternura do que é vão - da vida, em suma. E, um dia, entram num jardim, graças ao esforço imortal dos que repetem a forma humana, e acompanham uma pessoa viva durante dois segundos, pedindo atenção.
O Porto, cidade em que os fantasmas convivem com certo instante predestinado, é o preferido, sem cálculo e até sem paixão. Eu amo-o de modo um pouco perverso, como se ama a verdade. Hei-de ser um fantasma do Porto em tempo próprio, combatendo a minha imaterialidade para me aproximar das pessoas e dar-lhes a minha fé mal cumprida. Como eles fazem comigo, os fantasmas do Porto. Que tremenda forma de amor é exprimir-se humanamente quando o humano se abandonou para sempre! Como retribuir senão entregando ao mundo essa forma de conselho que dos espaços traz a sua melancolia? Como?»
Agustina Bessa-Luís in Dicionário Imperfeito, Guimarães Editores
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