Foto do meu filho de 10 anos
José Saramago Deste Mundo e do Outro, jornal A Capital, 1968/69.
A praça tem uma estátua de bronze: um homem alto, escuro, mais alto ali que qualquer de nós. Em todo o caso, há semelhanças entre a estátua e quem passa no largo. Tirante as diferenças do trajo, é o mesmo vulto, o mesmo perfil. Dizem que é Luís de Camões. Será. Uma vez por ano põem-lhe ramos de flores aos pés, com um misto de compungimento e pressa, assim como quem vai apresentar pêsames por um morto que não nos é nada. Chamam-lhe Luís de Camões, e está morto. Desde 1580 que está morto, vai fazer quatrocentos anos. Quando os fizer, haverá comemorações especiais, cortejos cívicos, récitas populares ou não, discursos-talvez um banquete. Mas o velho Luís Vaz, a quem por más acções chamaram Trinca-Fortes, continuará morto.
Este homem, no fundo, não é nosso parente. porque o parentesco não tem nada que ver com o lugar do nascimento e os laços de família. Parente, irmão, é carne e sangue, espírito e comunhão de espírito. E que comunhão existirá entre nós que passamos no largo e o poeta sobre quem o tempo passa e repassa? A sua voz está trancada nos lábios de bronze. Os ecos dessa voz, que ressoam de verso em verso, como entre montanhas que se falam e respondem, não chegam aos duros ouvidos deste tempo. A hora não vai para poetas, mesmo se os imortalizaram em bronze. A estátua é uma justificação, o remorso de um desamor.
Estas vozes, poderosas ou débeis, estas vozes de poetas que vão acompanhando o correr dos dias, plantando ao lado das estradas flores e árvores de flores - como é possível pensar que uma figura de mármore ou de bronze, ou, mais modestamente, uma lápide à esquina da rua, lhes dará corpo e ressonância?
Bem sabemos que a vida tem exigências imediatas, que é difícil a alguém, de cada vez que ali passa, dizer com os seus outros pensamentos: «É Luís de Camões, meu irmão reconhecido e amado .» Não é possível aguentar isto de descer ou subir a rua e levar na alma alguma coisa daquela alma heróica. (Heróica, porquê? Mas deixemos ficar o lugar comum.) A nossa vida breve, acomodada até nas negações, não suportaria o bafo vibrante daquele fogo que ali arde invisivelmente. Aqui viriam a propósito os pombos, seria altura de dizer que Luís de Camões está coroado de asas, e até, com um pequeno esforço, que nessas mesmas asas delegámos a nossa veneração e o nosso amor. Coitados dos pombos. Coitados de nós.
Daqui por um ano, terás mais flores aos pés. Daqui por um ano (e que é um ano para ti?), não sei se voltarei a dizer-te estas coisas ou outras coisas. Pouco importa, afinal. As palavras não dizem tudo quanto é preciso. Diriam mais, talvez, se fossem asas. Delego também nos pombos a tua coroação. E vou à minha vida, Luís de Camões, com muita pena de não levar a tua. Até para o ano, irmão. Até para o ano. Tem paciência e espera. Há em Portugal cerca de dez milhões de habitantes. Ainda tens muitas probabilidades.
FIM
José Saramago Deste Mundo e do Outro, jornal A Capital, 1968/69.
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