Sabíamos em que lugar estava o medo de quem, porque já nos conhecíamos há muito tempo. Muitas vezes não nos podíamos aturar, porque estávamos dependentes uns dos outros. Tínhamos de nos ofender.
Tu mais a tua cabeça-de-alho-chocho suábia. Tu mais a tua pressa ou molenguice suábia. Tu mais a tua mania suábia de contar os tostões. Mais a tua lorpice suábia. Tu mais os teus soluços ou espirros suábios, mais as tuas peúgas ou camisas suábias, dizíamos.
Seu peida-de-bombo-da-festa suábia, seu cabeça-de-vento suábio, seu kampelsackel suábio. A fúria era tanta que nos servíamos de palavras longas que nos separavam. Inventávamo-las como pragas para ganhar distância em relação uns aos outros. O riso era duro, perfurávamos a dor. Era rápido, porque nos conhecíamos por dentro. Sabíamos exactamente o que magoava o outro. Agradava-nos vê-lo sofrer. Queríamos que sucumbisse sob o peso do amor agreste e que sentisse a rapidez da sua derrota. Cada injúria arrastava a seguinte até que o visado se calava. E ainda um pedaço depois. Durante um pedaço ainda, as palavras caíam-lhe no rosto mudo como gafanhotos num campo devastado.
Imersos no medo, tínhamos olhado mais fundo uns nos outros do que era permitido. A longa confiança obrigava-nos a uma inversão que acontecia inesperadamente. O ódio podia aparecer e destruir. Na grande proximidade uns dos outros, ceifar o amor, porque ele voltava a crescer como a erva alta. As desculpas retiravam a ofensa tão rapidamente como se consegue reter a respiração. A procura do conflito era sempre intencional, as consequências dele é que permaneciam um descuido. Passada a fúria, o amor era pronunicado sem inventar palavras. Estava sempre lá. Mas no conflito o amor tinha garras.
(...).
Todos tínhamos um amigo em cada pedacinho de nuvem
é o que acontece com os amigos onde o mundo é cheio de medos
até a minha mãe dizia que era normalíssimo
os amigos estão fora de questão
pensa em coisas mais sérias
(...)
Queria que Kurt me mostrasse a ferida. Tu e essa tua compaixão suábia de chá de camomila, disse ele. Tu e o teu medo de engraxador de aldeia, disse eu.
Surpreendíamo-nos por ainda conseguirmos inventar expressões más, longas. Mas faltava às palavras o ódio, não conseguiam magoar. Na boca só tínhamos uma compaixão pestanejante. E, em vez da ira, a felicidade embaraçada de que o intelecto tivesse sido bem-sucedido depois de tanto tempo. Sem dizer palavra, não podíamos deixar de nos perguntar se Edgar e Georg, quando voltassem à cidade, ainda estariam suficientemente vivos para magoar.
Kurt e eu rimo-nos pelo quarto dentro, como se tivéssemos de agarrar-nos um ao outro antes de os nossos rostos desatarem, de repente, a tremer como queriam. Antes de qualquer um de nós se preocupar com o controlo do canto da sua boca. Ao rir, olhávamos para a boca do outro. Sabíamos que no momento seguinte ficaríamos tão sós diante dos lábios controlados do outro como quando começassem a tremer.
Depois chegou esse momento: fechei-me no bater do meu coração e tornei-me inalcançável para Kurt. A minha frialdade não se deixava entusiasmar por qualquer palavra má, não conseguia inventar mais nada. Nos meus dedos esta frialdade era capaz de passar à violência. Por baixo da janela passou um chapéu."
Herta Müller (Prémio Nobel 2009)
A terra das Ameixas verdes (Pags. 68 e 69, 71, 111 e 112)
Difel, 2009
2 comentários:
Maravilhoso.
Obrigada Augusto. Repeti-o em parte.
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