"Na manhã seguinte retomaram a marcha bem cedinho. Estava muito frio. À tarde começou a nevar outra vez e acamparam cedo e agacharam-se por baixo do toldo de oleado e ficaram a ver a neve a tombar na fogueira. Ao amanhecer havia no solo mais uns bons centímetros de neve recente, mas parara de nevar e o silêncio era tão profundo que eles quase conseguiam ouvir os próprios corações. Ele amontoou lenha sobre as brasas e atiçou-as até reavivar as chamas e afastou-se, a caminhar penosamente sobre os montões de neve, para desenterrar o carrinho. Examinou as várias latas e regressou para junto do rapaz e sentaram-se diante da fogueira e comeram as últimas bolachas de água e sal e uma lata de salsichas. Numa bolsa da mochila ele encontrara um pacote de cacau meio cheio, o último que lhes restava, e preparou a bebida para o rapaz e depois encheu a própria caneca de água quente e ficou recostado, a soprar para o bordo.
Prometeste que não fazia isso, disse o rapaz.
O quê?
Tu sabes o quê, papá.
Despejou a água quente para dentro da caçarola e pegou na caneca do rapaz e verteu uma parte do cacau para dentro da sua e depois devolveu-lha.
Tenho de estar sempre de olho em ti, disse o rapaz.
Eu sei.
Quem quebra as pequenas promessas também quebra as grandes. Foi o que tu disseste.
Eu sei. Mas eu não vou fazer isso.
(...)
Entraram na pequena clareira, com o rapaz agarrado à mão dele. Os outros tinham levado tudo, à parte uma massa negra que assava no espeto, por cima das brasas. Ele estava parado, a prescrutar a orla da clareira, quando o rapaz se virou e escondeu o rosto contra si. Ele olhou rapidamente para perceber o que sucedera. O que é ?, perguntou. O que é? O rapaz abanou a cabeça. Oh, papá, disse. Ele virou-se e olhou de novo. O que o rapaz vira era um bebé humano chamuscado, sem cabeça e despojado das vísceras, a tostar no espeto. Ele curvou-se e pegou no rapaz e começou a caminhar para a estrada com ele ao colo, abraçando-o com força. Desculpa, sussurrou. Desculpa.
(...)
Ele viu-o aproximar-se através da erva e pôr-se de joelhos, segurando o copo de água que fora buscar. Um halo de luz rodeava-o por completo. Ele pegou no copo e bebeu e tornou a recostar-se. A única comida que lhes restava era uma lata de pêssegos, mas ele obrigou o rapaz a comer tudo e recusou-se a aceitar uma só dentada. Não sou capaz. disse. Não faz mal.
Eu guardo a tua metade.
Está bem. Guarda metade até amanhã.
O rapaz pegou no copo e afastou-se e, quando se moveu, a luz moveu-se com ele. Quisera fazer uma tenda com o oleado, ou pelo menos tentar, mas o homem recusou. Disse que não queria nada a cobri-lo. Deitado no chão, contemplava o rapaz junto à fogueira. Queria ser capaz de ver. Olha à tua volta, disse. Não há profeta algum na longa crónica da terra que hoje não seja homenageado aqui. Sejam quais forem as imagens que evocaste, tinhas razão."
Cormac Mccarthy
A Estrada
Relógio D'Água
Sem comentários:
Enviar um comentário