"Perdi o amor por essa espécie de terra, pensou, já não me interessa senti-la entre os dedos. Já não quero o verde e o castanho, mas o amarelo e o vermelho; não a humidade, mas a aridez; não a sombra, mas a luz; não o macio, mas o duro. Estou a transformar-me numa outra espécie de homem, se é que há duas espécies de homens. Se me cortassem, disse, estendendo os pulsos, olhando os pulsos, o sangue não jorrava; havia de infiltrar-se nos poros e secar. Cada dia que passa, tomo-me mais pequeno, mais duro e mais seco. Se morresse aqui, à entrada da caverna, ao olhar para a planície, com a cabeça apoiada sobre os joelhos, um dia seria levado pelo vento e mantido intacto, como alguém sufocado pela areia do deserto. Nos seus primeiros dias no alto da montanha, saía a vaguear, virava pedregulhos, mastigava raízes e bolbos. Um dia abriu um formigueiro e comeu as larvas, uma a uma. Sabiam a peixe. Mas agora já não ia à aventura para comer e beber. Não explorava o seu novo mundo. Não transformou a caverna em habitação, nem lá guardava qualquer recordação dos dias que iam passando. Nada havia que esperar e apenas contemplava, todas as manhãs, a sombra da montanha que se alongava cada vez mais até ele e, de repente, era invadido pela luz. Sentava-se ou deitava-se, como um sonâmbulo, à saída da caverna, demasiado fatigado para se mover ou demasiado indiferente. Às vezes dormia tardes inteiras; e acudia-lhe à mente se estaria a viver numa espécie de êxtase."
JM Coetzee, A Vida e o Tempo de Michael K
JM Coetzee, A Vida e o Tempo de Michael K
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