Não sei se conhecem Heidelberg, famosa pela sua universidade e pelos brinquedos de madeira destinados ao Natal. Isto dos brinquedos é coisa minha. Também há ursos cor-de-rosa, com uma grande barriga, como se faziam no século passado, no estilo dos contos ingleses para crianças. Depois os ursos de peluche tornaram-se mais laváveis e sem aqueles focinhos bordados a algodão perlé por uma mulherzinha que usava ainda o avental da camponesa do Palatinado e, provavelmente, os sapatos de montanha, de vitela com ilhós.
Eu passei um inverno em Heidelberg, em casa de uma escritora que estivera a maior parte da vida no exílio e que tinha mais de noventa anos. Era, no entanto, extremamente lúcida e com olhos azuis de uma beleza ofuscante. Chamava-se Dominga. Não sei se era um nome inventado, porque vivera em Santo Domingo durante alguns anos, decerto os mais felizes da sua vida. Fora casada com um diplomata e amava-o com essa austeridade dos sentidos com que algumas mulheres contemplam as suas próprias divagações.
Uma floresta em Heidelberg não é o que pensam. Não se parece com uma floresta, mas com alguma coisa de extinto e que só pertence aos nossos sonhos. Eu imagino que na planície castelhana, onde viviam as tartarugas gigantes antes do aquecimento da terra, havia aquele silêncio que fazia perceptível a queda de uma gota de chuva no ar limpo e onde ondulavam as folhas mortas. Levavam uma infinidade de tempo a cair ao chão e eram manobradas pelo vento como as velas de um barco.
A Casa de Dominga, um chalet grande e rasgado de muitas janelas, encontrava-se dentro de um parque sempre húmido e prestes a cair em decomposição. Muitas das casas da floresta estavam encostadas à ravina onde apareciam corças com o ar que lhes ficara do tempo das caçadas, um ar delirante de medo que lhes fazia tremer as orelhas. Mas a casa de Dominga era mais do tipo heráldico, com um portão de ferro que, devido à ferrugem, nunca se fechava.
Eu ocupava o quarto voltado a nascente, onde o marido morrera com um cancro do pâncreas, e digo-lhes que levei algum tempo a habituar-me, embora tudo me parecesse elegante e duma extrema e confortável simplicidade. As paredes estavam cobertas por estantes cheias de livros em línguas que eu não entendia, como o russo e o polonês. Num canto havia um lavatório com tampo de mármore e um saboneteira de loiça. levantei a tampa e surpreendeu-me um sabonete molhado, como se alguém acabasse de se servir dele.
- Esteve alguém neste quarto antes de mim? - perguntei a Dominga. Ela servia-me o chá e empurrou ligeiramente o prato dos biscoitos que se diriam paciências, mas com sabor de menta.
- Não. Ninguém usa esse quarto há muito tempo. - Fez uma pausa embaraçada e disse:- Era o escritório do meu marido.
Já ninguém tinha escritórios e a própria Dominga escrevia no quarto de dormir que era grande, com um leito de campanha e uma pomba de talha dourada pendurada por cima dela. A pomba tinha laivos cor-de-rosa no peito e Dominga disse que ela sangrava. "É um pomba estigmatizada"- disse, com uma espécie de humor frio e completamente calculista indiferente ao que eu podia pensar. (Continua)
Agustina Bessa-Luis in Dominga
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