sábado, 13 de março de 2010

A Mãe

«- Vou ser breve - disse Lee.- Nós vivíamos numa cabana escura, no meio dum batatal, e o meu pai contava-me a história da minha mãe.
(…)
E Lee recuou no tempo.
- Devo começar por lhe dizer que os vossos caminhos de ferro do Oeste foram construídos por chineses, milhares de chineses que fizeram os aterros, colocaram as chulipas e assentaram as vias.
(…)
Depois de contratados, embarcavam-nos para a América e é muito provável que a história do meu pai seja um caso típico.
(…) Mas o meu pai era um rapaz recém-casado e estava ligado à mulher por um sentimento profundo, muito forte e muito belo. Ela também o amava perdidamente.
(…)
Estavam no mar há uma semana quando o meu pai descobriu a minha mãe. Vestia à homem e entrançara o cabelo.
(…)
A minha mãe pegou na enxerga e estendeu-a ao lado da do meu pai. Só podiam falar às escuras, com a boca colada ao ouvido. O meu pai estava zangado por ela ter desobedecido mas, ao mesmo tempo, sentia-se feliz.
(…)
- Como é que a sua mãe podia fazer um trabalho de homem?
Lee sorriu.
- O meu pai dizia que ela era forte e eu creio que uma mulher pode ser mais forte do que um homem quando está apaixonada. A mulher que ama é quase indestrutível.
(…)
- Houve uma coisa que a minha mãe não segredou ao meu pai durante a longa travessia e, como muitos deles sofriam horrivelmente de enjoo, ninguém estranhou que ela tivesse vómitos e náuseas.
- Não me diga que estava grávida! – exclamou Adam.
- Estava, sim – confirmou Lee -, mas ela não queria sobrecarregar o meu pai com mais preocupações.
(…) Em San Francisco, o gado foi carregado em vagões e as locomotivas rebocaram-no para as montanhas. Iam nivelar colinas e perfurar túneis. A minha mãe foi separada do meu pai e ele só tornou a vê-la no acampamento, instalado num planalto. O sítio era muito bonito, todo cheio de verdura e de flores, no meio das montanhas cobertas de neve. Foi nessa altura que ela informou o meu pai da minha existência.
As obras iniciaram-se. Os músculos das mulheres enrijecem como os dos homens, e a minha mãe tinha uma vontade de ferro. Pegou na pá e na picareta e fez o trabalho pelo qual lhe pagavam, o que deve ter sido horrível. Mas logo se encheram de medo quando começaram a pensar na maneira como nasceria a criança.
Adam disse:
- Porquê? Então ela não podia ir ter com o capataz, dizer-lhe que era mulher e que estava grávida? Com certeza que tratavam dela.
- Não – disse Lee. – Não está a compreender e a culpa é minha por não ter sido devidamente explícito. O gado humano era importado apenas com um único objectivo: o trabalho.
Assim, que a tarefa terminava, devolviam os sobreviventes para a China. Só os machos eram importados. Nada de fêmeas. O país não queria que tal gente se reproduzisse. Um homem uma mulher e um filho agarram-se á terra, constroem um lar de que é difícil arrancá-los, enquanto que um rebanho de homens inquietos, excitados e atormentados pela falta de mulheres irá para qualquer lado e, muito especialmente, para o lugar de onde veio. A minha mãe era a única mulher no meio daqueles brutos.
(…)
Para ficarem juntos, disseram que ela era o sobrinho do meu pai. Os meses passaram e, felizmente, a minha mãe não engordou demasiado. Continuava a cumprir a obrigação no meio do maior sofrimento. O meu pai auxiliava-a um pouco, desculpando-a: «O meu sobrinho é anda muito novo e franzino.» Mas não tinham planos nenhuns e não sabiam o que haviam de fazer.
Foi então que o meu pai imaginou um plano. Fugiriam para as altas montanhas… à beira de um lago…
(…)
- Espero que tenham conseguido o que queriam – disse Adam.
- Pois é. Quando o meu pai chegava a este ponto da narrativa eu pedia-lhe sempre: «Vê se chegas ao lago, vê se consegues lá chegar com a minha mãe e construir uma casa de troncos de abeto.» O meu pai, então, tornava-se muito chinês e respondia-me: «Há mais beleza na verdade, mesmo que seja uma verdade medonha. Os mendigos que contam histórias às portas da cidade mascaram tão bem a vida que ela acaba por parecer boa e fácil aos preguiçosos, aos teimosos e aos covardes, o que só pode concorrer para lhes agravar as enfermidades. Por esse processo, nada se aprende, nada se cura, e o coração nunca se abre.»
- Continue – disse Adam com irritação.
Lee levantou-se, dirigiu-se para a janela e acabou a história contemplando as estrelas. Lá fora, soprava o vento de Março.
- Certo dia desprendeu-se um pequeno rochedo e foi partir a perna do meu pai. Trataram-no e deram-lhe um trabalho de doente: endireitar pregos em cima duma pedra com um martelo.
Então, devido ao trabalho ou à angústia – não é isso o que interessa – a minha mãe sentiu as primeiras dores. Os homens, semi-loucos compreenderam e perderam a razão.
Um desejo ateou outro. Um crime ocultou o crime precedente, e todos os crimes cometidos contra esses homens famintos alimentaram uma enorme fogueira de loucura.
«O meu pai ouviu o grito: “Uma mulher!”, e compreendeu logo. Tentou correr, tornou a partir a perna e arrastou-se pela vereda que conduzia ao sítio onde se desenrolava aquela cena de horror.
Quando lá chegou o céu parecia oculto por uma espécie de tristeza e os homens de Cantão fugiam em silêncio para se esconderem, para esquecerem que os homens também podem ser aquilo.
A minha mãe estava estendida num monte de pedras. Já nem sequer tinha olhos para ver, mas mexia a boca e conseguiu articular as instruções necessárias. O meu pai arrancou-me da carne esfacelada da minha mãe com as próprias mãos. Ela morreu nessa tarde em cima do monte de pedras.
Adam respirava com dificuldade. Lee prosseguiu numa voz ritmada.
- Antes de odiar esses homens, fique sabendo isto que o meu pai acrescentava sempre no fim que nunca houve nenhuma criança que fosse tratada como eu. Todo o acampamento quis ser minha mãe. É belo, de uma beleza atroz. E, agora, boa noite. Já não posso falar mais.»

John Steinbeck
A Leste do Paraíso Vol. II,

Edição Livros do Brasil

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