quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

um sorriso luz


Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso,
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.

Eugénio de Andrade (19.01.1923-13.06.2005)

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

olhares




Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo.

Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.

Sophia de mello Breyner Andresen
Coral


Esta vista de mar, solitariamente, dói-me.
Apenas dois mares, dois sóis, duas luas
me dariam riso e bálsamo.
A arte da natureza pede o amor em dois olhares.

Fiama Hasse Pais Brandão
As Fábulas.

o tempo


Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio.
E suportar é o tempo mais comprido.

Sophia de Mello Breyner Andresen
Coral. Obra Poética.


Se você não demorar muito
posso esperá-lo por toda a minha vida.

Oscar Wilde


Quem me roubou o tempo que era um
quem me roubou o tempo que era meu
o tempo todo inteiro que sorria
onde o meu Eu foi mais limpo e verdadeiro
e onde por si mesmo o poema se escrevia.

Sophia de Mello Breyner Andresen
Poemas dispersos.Obra Poética

entre mãos



Há coisas conhecidas e coisas desconhecidas;
 entre elas, ficam as portas.

William Blake


Só me conhece quem me sentiu as mãos.

João Pedro Grabato Dias

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Mãe. Uma vida inteira.


-Mãe
comigo a pensar
- quem sou eu?
- quem é o eu que diz que sou eu?
eu antes do meu marido não necessitava de perguntar quem era
dado que eu era eu, nenhuma porção minha fora de mim como agora,
nenhuma porção
- Mãe
e eu
- O que é mãe?

António Lobo Antunes
Eu Hei-de Amar uma Pedra






Tão estranho carregar uma vida inteira no corpo,
e ninguém suspeitar dos traumas,
das quedas, dos medos, dos choros"

Caio Fernandes Abreu
Cartas


segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

os nossos janeiros



...hei-de reconhecer os janeiros
(dúzias de janeiros prometo)
pela pressa das nuvens,
chegue comigo à janela, dê-se conta,
perceba...

António Lobo Antunes
Eu Hei-de Amar Uma Pedra

gosto / não gosto


gosto dos meus filhos. gosto de mim. gosto do P. gosto de palavras. gosto de poesia. gosto do mar. gosto de caminhar. gosto de cozinhar. gosto do cheiro a terra molhada. gosto da madrugada. gosto de dormir a "siesta". não gosto de impostores. não gosto de oportunistas. não gosto de pessoas falsas. não gosto de invejosos. gosto de flores de laranjeira. não gosto de cortar flores. gosto de limoeiros. gosto do aroma das "caneleiras". gosto do luar de janeiro. gosto de disputar corridas com a Lua. gosto de dormir. gosto de tomar pequeno almoço na cama. gosto de chupar caroços de nêsperas. gosto de sopa. gosto de pêssegos. gosto de melão. gosto de cerejas. gosto de mãos. gosto de sorrisos. não gosto de "públicas virtudes". gosto de "vícios privados". gosto de fado. gosto de Portugal. gosto de África. gosto do Brasil. não gosto da Alemanha. não gosto de máfias. gosto de Vladivostok. gosto do Expresso do Oriente. gosto do "caracter" dos gatos. não gosto de "donos". odeio violadores. não gosto de nulidades. não gosto de porco. gosto de peixe. gosto de saladas. não gosto de Kiwi. gosto de laranjas. gosto de ananás. gosto de papaia. gosto de manga. gosto de banana. gosto da maçã e do etc. não gosto de doces. não gosto de salgado. não gosto de fígado. não gosto de fritos. não gosto de massa. não gosto de coca-cola. não gosto de refrigerantes. gosto de água. gosto de arroz. gosto de pão. gosto da primavera. gosto de aves. gosto do canto das aves. gosto de raposas. gosto do fogo da lareira. gosto de ar frio. gosto do azul. gosto de neve. não gosto de chuva. não gosto de lixo. não gosto de dias pequenos e escuros. gosto do vento. gosto do Outono de setembro e outubro. não gosto de "línguas de trapo". não gosto de intrigas. não gosto de corruptos. não gosto de adictos. não gosto de tabaco. gosto de livros. gosto da Lua. gosto das estrelas. não gosto de pornografia. não gosto de escravatura. não gosto de exploração. não gosto de injustiças.  não gosto de estatísticas. gosto de filo/sofia. gosto de literatura. gosto de música. gosto de Brel. gosto de Caetano Veloso. não gosto de "bruxas". não gosto de circo. não gosto de palhaços. não gosto de Bancos. não gosto do "Capital". não gosto da "Crise". gosto de ovo estrelado. gosto de nozes. gosto de chocolate. gosto do Douro. gosto do Porto. gosto de Coimbra. gosto de branco. gosto de "África Minha". gosto de "Um Eléctrico Chamado Desejo". gosto do "Esplendor na Relva". não gosto do "Último Tango em Paris" mas, gostei de ver. gosto da "Insustentável Leveza do Ser". gosto de Steinbeck. gosto de Dostoiévski. gosto de Italo Calvino. não gosto de "escritores" que escrevem livros "ao molho". não gosto de monarquias. não gosto de ditadores, mesmo mortos. não gosto de políticos. não gosto de pessoas "vítima". não gosto das "prima donna". gosto de obras prima. gosto do natal. gosto de cadeiras. gosto de casas. gosto de chaises longue. não gosto de gel de duche. não gosto de anéis. não gosto de cintos. não gosto de collants. gosto de conduzir. gosto de brincos. gosto de vestidos. gosto de casacos. gosto de saltos altos. gosto de esfoliantes. gosto de sabonetes.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Urbi et Orbi por Pessoa


VIII

Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas...
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou –
«Se é que ele as criou, do que duvido» –
«Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres.»
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?

O Guardador de Rebanhos (trecho)
Alberto Caeiro