domingo, 26 de março de 2017

Da queda um passo de dança



De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro.


O encontro marcado [Fernando Sabino]

sábado, 6 de agosto de 2016

Não Nos Escolhemos




somos deuses,
insatisfeitos porque nos desconhecemos
solitários porque não nos escolhemos.
somos deuses
cruéis porque nos des-amamos
confusos porque não cremos
somos deuses

PM

domingo, 17 de julho de 2016

Consideração pessoal



Não desejar mais do que a si próprio.
Deitar fora o excesso.
Impedir o inútil.
Caminhar para si.

PM


segunda-feira, 11 de julho de 2016

O Euro




Lágrimas de Cristiano, asas de borboleta, golo de cisne negro, fé do Santos.

PM









sábado, 2 de janeiro de 2016

Ocupar o coração dos outros...





Vão para o Paraíso as pessoas de quem os outros sentem a falta. 
O Paraíso é o espaço que ocupamos no coração dos outros» 

A Teoria Geral do Esquecimento
José Eduardo Agualusa  (pág.215)

Atenção...





«Mesmo em Raissa, cidade triste, corre um fio invisível que liga um ser vivo a outro por um instante e a seguir se desfaz, e depois torna a estender-se entre pontos em movimento desenhando novas rápidas figuras de modo que a cada segundo a cidade infeliz contém uma cidade feliz que nem sequer sabe que existe».

Italo Calvino
as cidades invisíveis- As cidades ocultas. 2.
trad. josé colaço barreiros
teorema

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Até à obra...





As dores, no início.
No caminho a fé.
No fim a obra...



terça-feira, 7 de julho de 2015

Entre a alegria e a dor






A paixão queima, o amor enlouquece, o desejo trai.
Talvez esses fossem bons motivos para decidir entre a alegria e a dor, sentir o nada, mas não são.
Se a virtude estivesse mesmo no meio termo, o mar não teria ondas, os dias seriam nublados e o arco-íris em tons de cinza.
O nada não ilumina, não inspira, não aflige nem acalma, apenas amplia o vazio que cada um traz dentro de si.
Não é que fé mova montanhas, nem que todas as estrelas estejam ao alcance,
para as coisas que não podem ser mudadas resta-nos somente paciência,
porém, preferir a derrota prévia à dúvida da vitória é desperdiçar a oportunidade de merecer.
Pros erros há perdão; pros fracassos, chance; pros amores impossíveis, tempo.
De nada adianta cercar um coração vazio ou economizar alma.
Um romance cujo fim é instantâneo ou indolor não é romance."

Fernando Pessoa


domingo, 5 de julho de 2015

Eles dobram por ti...



Nenhum homem é uma ilha isolada;
cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra;
se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, 
como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria;
a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do género humano.

E por isso não perguntes por quem os sinos dobram;

eles dobram por ti.


John Donne.
Meditações.
Excerto da meditação VII.


Sobre felicidade...




"Eu , que estou de bem com a vida,
creio que aqueles que mais sabem de felicidade
são as borboletas e as bolas
de sabão e tudo o que entre os homens se lhes assemelhe."

Nietzsche. 



sábado, 30 de agosto de 2014

A montanha





O sol arde.
As cores da montanha
oferecem-se em sacrifício.
As rochas brancas alvejam olhos humanos.
Anjos pretos de asas largas e
voo plano, debicam a morte.
Flores minúsculas sobrevivem ao agreste.
A montanha ergue-se imponente e autoritária.
Abre suas entranhas à agua e à vertigem.
Aos hinos geológicos.
Aos ecos profundos.
O vento roxo corta os rostos
presentes e futuros.


A alma cai de joelhos onde a solidão é enigma.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Nasce Abril






Quando o medo, de tanto quebrar, se torna mais pequeno
Que a cama estreita onde se dorme
Que a roupa apertada que se veste
Que os pensamentos que se propagam
Que a liberdade que se almeja
Que a cumplicidade que se alcança
Que as asas que cresceram
Que a arte que nos enche
Nasce Abril.

PM.

ABRIL...

Sentei-me no jardim, na terra aquecida pelo soalheiro dia que se vivia.
Estava no meio das flores e do chilrear dos pássaros.
Gentilmente toquei as ásperas pedras quentes que estavam a meu lado.
Olhos do mundo.
Perto delas estava um cravo
Fraco e débil
Saudoso do lar
Uma qualquer espingarda de Abril
Uma qualquer arma da revolução...
A Liberdade
O espírito perdeu-se ou Evoluiu
O cravo vermelho foi esquecido
Mas naquele dia e nos outros eu era livre
Mesmo se nem sempre o valorizei.
Contudo
O cravo de Portugal
Ou Portugal num cravo
Jaziam no chão...
Propósitos perdidos
Ideais corrompidos.
A Liberdade não era a mesma
Coisas que não deviam ser esquecidas estavam perdidas.
Olhei o Céu e as Árvores e pedi conselhos.
Então num virar da ampulheta
Olhei à minha volta e vi cravos vermelhos
Até onde o olhar alcançava
E quem sabe mais além.
A Liberdade de Abril
Do Abril da Liberdade
Subsistia.
Estava de novo viva.
Empunhada pelos jovens.
Então peguei na mais bela das pedras que estava ao meu lado
E tentei vergá-la mas não fui capaz.
Era Portuguesa e livre.
Tal como eu
Tal como nós.

25 de Abril Sempre!!!!!!!!

Pedro de Sousa Barros, meu filho mais velho.
25 de Abril de 2008.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

de costas para a tarde...



 
“Nas tardes de chuva fina e persistente, se o amado estiver longe e o peso invisível de sua ausência for insuportável, colha de sua horta 28 folhas novas de melissa e leve-as ao fogo num litro de água, para um chá. Quando a água ferver, deixe o vapor molhar a polpa de seus dedos e mexa três vezes com uma colher de pau. Tire do fogo e deixe descansar por dois minutos. Não ponha açúcar, beba gole a gole de costas para a tarde, numa xícara branca. Se depois de meio litro você não notar certo alívio atrás do esterno, requente o chá e acrescente duas raspas de rapadura. Se no fim da tarde a agonia persistir, pode ter certeza de que ele não vai voltar. Ou vai voltar outra tarde, e já muito mudado.”
Héctor Abad
Livro de Receitas para Mulheres Tristes

terça-feira, 8 de abril de 2014

Vitória de Samotrácia




Peço perdão por serem as asas o deslumbramento 
- a ousadia perpetuada e fria - 
Embora queira falar da força do movimento
E do rosto do navio cortando o vento

Farei silêncio no que tem de comum com as estrelas
-  a contingência extrema -

Nos meus olhos os seus
livres 
de olhar para cima
para longe
para dentro.

PM




quarta-feira, 2 de abril de 2014

Poesia todos os dias

uma chuva de estrelas
lança de sol
rabanada de vento
pancada de chuva
geada de dentes
noite de lobo

uma nesga de luz

um pé de vento
banho de lua
sopro de vida
pingo de vergonha
cavaleiro branco
homem de palha
elefante branco

um manjar dos deuses

coração da cidade
dores de alma
pés de barro
rios de tinta
escrita na pedra

Anónimos



terça-feira, 1 de abril de 2014

Noite de Abril



Hoje, noite de Abril, sem lua,
A minha rua
É outra rua.

Talvez por ser mais que nenhuma escura
E bailar o vento leste
A noite de hoje veste
As coisas conhecidas de aventura.

Uma rua nova destruiu a rua do costume.
Como se sempre nela houvesse este perfume
De vento leste e Primavera,
A sombra dos muros espera
Alguém que ela conhece.

E às vezes, o silêncio estremece
Como se fosse a hora de passar alguém
Que só hoje não vem.

Sophia de Mello Breyner Andresen


segunda-feira, 31 de março de 2014

Inesperadamente...



 
 
«Ai, Gasosas, que me mataste!»- uma exclamação dirigida ao recorrente, que é conhecido por aquela alcunha, e que, naquele lance supremo, denuncia um espanto - um espanto desesperado em face da morte iminente, sem dúvida -, mas também a decepção trágica ante o irremediável da morte provocada por um amigo. Há qualquer coisa de irresistivelmente tocante nessa exclamação extrema, que, no seu trágico, tem ainda o rasto expansivo da afectividade, sobrevivendo ao acto ruptural da vida que acabara de ser cometido. Como se a vítima apelasse ainda, no derradeiro momento, para a amizade do amigo, que acabara de cometer esse acto brutal, porventura sem ter medido as consequências do seu acto, essa «brincadeira» arriscada.
 
Rodrigues da Costa
in Ac. do STJ de 30.10.2003

domingo, 30 de março de 2014

Madrugada




Foto da autora

Um leve tremor precede a madrugada
Quando mar e céu na mesma cor azulam
E são mais claras as luzes dos barcos pescadores
E para além de insânias e rumores
A nossa vida se vê extasiada.

Sophia de Mello Breyner

sábado, 29 de março de 2014

LISBOA




Lisboa tem um vestido azul feito de
mar e guerra.
E cheira a laranjas maduras.
Quando as gaivotas trazem no bico
os primeiros pedaços de sol para acender o dia,
Lisboa deixa correr os cabelos pelo Tejo
e o povo pelas ruas.
À mesma hora, a coragem agita no sangue
duas grandes asas inquietas.
Por todas as janelas destruídas, já o mar entrou,
derrubando acácias,
cantando hinos de espuma
E porque toda a coragem é necessária,
toda a esperança é legítima.

Joaquim Pessoa

 
 
Se pensarmos nos Jacarandás floridos, na sua dança aérea e azul, Lisboa parece estes dias uma composição sonhada por Chagal ou Matisse.
Lisboa deve às árvores de que se esquece, uma parte eloquente da sua beleza. Elas guardam, para nós, a cor, o alfabeto vegetal do silêncio, o atalho secreto da alegria.


José Tolentino   
 
 
 
 
LISBOA
 
Corpo de velas enamoradas do vento
Alma de ópera bufa com sabor a fado
Sobre as janelas floridas dança uma luz de ouro e encantamento
Crescem marinheiros azuis com cheiro a sal e intriga
Entretanto chega a noite fresca como seda.

PM


quinta-feira, 27 de março de 2014

quando a ave disser o teu nome...





Aproximava-se a linha mais certa da vida, quando ela chegou.
Ela tinha medo que o medo dele fosse insuportável.
Toda a dor que ele pudesse ter, agora, naquela fragilidade, era um inferno nela.
Foi quando ela se lembrou da imagem das margens ou das fronteiras.
- Lembras-te quando foste a salto para França, e o "passador" ameaçou deixar-te no meio dos Pirenéus sozinho?
Ele respondeu-lhe: que aves voam do outro lado? Como vou saber que é Primavera?
Ela. Talvez quando o vento florir a pedra. Ou, a ave que nunca viste disser o teu nome.
 
PM
 
 
 
 

As tuas pegadas, o caminho!




Caminante, son tus huellas
el camino y nada más;
Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace el camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante no hay camino
sino estelas en la mar

António Machado:

terça-feira, 25 de março de 2014

A errar crescemos...



 
 
 
 
O importante não é ser perfeito, mas sim inteiro.
 Jung.


Errar, errar de novo, errar melhor.
Samuel Beckett




 

quinta-feira, 20 de março de 2014

Partilhar...






A despedida talvez seja a parte mais difícil da esperança.


Talvez o que de mais significativo somos capazes de partilhar não encontra no mundo linguagem melhor do que o silêncio.


José Tolentino Mendonça.
O Hipopótamo de Deus

domingo, 16 de março de 2014

O Nelson





É sempre no parque de estacionamento do supermercado que encontro o Nelson.
Ele aproxima-se de mim sorrateiro enquanto meto as compras na mala.
E faz-me sempre a mesma pergunta para a qual sabe de antemão a resposta.
A senhora quer comprar curitas?
Embora a pergunta já venha embrulhada num tom de desculpa e tenha o
significado: desculpe mas é só para meter conversa...
Eu ponho o sorriso mais afectuoso que tenho.
E digo-lhe, sobre a pergunta já sabes a resposta.
E enquanto procuro nas compras algo que ele goste, vou-lhe puxando o ego para cima.
Então, cá está o Nelson um rapaz bem comportado!
E ele responde-me timidamente: tem de ser.
O Nelson deve ter agora 17 ou 18 anos. Eu conheço-o desde que ele tinha três ou quatro e tocava harmónica, sentado no corredor friorento do supermercado, com um boné no chão à frente das suas pernas de chinês.
Nessa época eu ia sempre ao supermercado ao Sábado de manhã e já fazia compras específicas para ele. Bananas, yogurtes, bolachas, até cheguei a comprar-lhe uma colher para ele comer os yogurtes.
Mas a minha coroa de glória veio um dia, quando ele tinha 12 ou 13 anos .
Eu tinha estado sem o ver um período longo, um ano ou mais.
E perguntei-lhe se podia continuar a dar-lhe comida.
E ele respondeu-me, para mim até é melhor, para os meus pais é que não.
Ultimamente, quando ele se aproxima fazemos de conta que é uma festa. Onde eu sou uma anfitriã alegre  e carinhosa e ele o convidado, com direito a escolher de entre várias coisas duas ou três delas.
Gosto de pensar, enquanto ele se afasta naquele andar petulante de rapaz de etnia cigana, que posso fazer a diferença e evitar que ele se torne num segundo Agostinho.
O mundo já tem tantos Agostinhos. E eu estou tão cansada deles.
Ou melhor, estou tão cansada de fazer o meu melhor para lhe ver a pessoa toda e não só a "pobre" atitude.

PM

quinta-feira, 13 de março de 2014

Cremilde's





Foi quando dobrei a esquina que deparei com a Cremilde, vestida de domingo e a falar com as árvores da praça. Sim!
Não numa atitude poética e sigilosa mas como se a natureza a tivesse dotado de meios para ter uma conversa tu-cá, tu-lá com as árvores.
Num momento tudo se tornou claro, o sofrimento deixou de caber dentro e passou para fora escancarado e trocista. O passado saltou para o presente sem barreiras, num teatro íntimo só com um actor e as árvores, protagonistas inconscientes mas, fiéis à intimidade e às personalidades que encarnavam estáticas, o Porfírio, a Florbela, o patrão, o padre, o bebé e tudo o que nunca devia ter acontecido...
Tudo a fazer sentido a quem lhe conhecesse a vida.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Quarta feira de cinzas

 
Não temo o fogo que me adverte com suas chamas,
mas livrai-me da brasa moribunda que
se esconde sobre as cinzas.

Rabindranath Tagore.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Mas que raio! A mensagem sofreu do inconseguimento da transmissão, pelo ridículo e pretensiosismo da linguagem!? (post temporário?!)




O meu medo, eu formulá-lo-ia de modo abstracto.
É o medo do não conseguimento.
O inconseguimento de estar num centro de decisão fundamental
a que possa corresponder uma espécie de nível social frustracional derivado da crise.
Mas também tenho medo que a crise não me permita até, eu diria,
espaços de energia para ser mais criativa.
Há sempre esse medo. É também o do não conseguimento.
E tenho medo de um não conseguimento ainda mais perverso,
o da Europa se sentir pouco conseguida e de ela não projectar para o mundo
o seu soft power sagrado, a sua mística dos direitos,
a sua religião civil da dignidade humana.
Tenho medo do egoísmo, que nos deixa, de certo modo,
castrados em termos pessoais e que nos deixa castrados em termos colectivos,
 que não permita aquilo que os franceses chamam reussir;
 o conseguimento; o conseguimento pessoal e colectivo.
Tenho medo do não conseguimento.

Assunção Esteves.



quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Ambiguidades...


A pequenez de um homem anda a par
com a grandeza dos seus segredos.

PM





sábado, 1 de fevereiro de 2014

meteorologia não convencional



O Fevereiro é o mês dos pés de sol,
quando pegam temos um Março soalheiro .
 
 
O Fevereiro é um mês com temperamento bipolar.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Ensaio depois do arco íris


 

Ninguém passa debaixo do arco-íris.

No arco-íris o azul é uma subtileza
 entre o roxo e o verde.
 
 
 
 
O arco-íris é um pé de sol, de riso e fantasia.





segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Só...a Luz do Sol




Querem uma Luz Melhor que a do Sol! 
AH! QUEREM uma luz melhor que
a do Sol!
Querem prados mais verdes do que estes!
Querem flores mais belas do que estas
que vejo!
A mim este Sol, estes prados, estas flores contentam-me.
Mas, se acaso me descontentam,
O que quero é um sol mais sol
que o Sol,
O que quero é prados mais prados
que estes prados,
O que quero é flores mais estas flores
que estas flores -
Tudo mais ideal do que é do mesmo modo e da mesma maneira!



Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
Heterónimo de Fernando Pessoa




“Eu só vou com o outro naquilo que já fui comigo mesmo”.
JUNG

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Como se pinta um país




na velha tela espalha-se um mar antigo
reserva-se um rectângulo com uma imensa janela para o azul
dentro da janela planta-se um pinhal verde
por ordem do rei
a corôa do rectângulo pinta-se com cores estrangeiras

quando pela primeira vez se espalha a luz do dia
vira-se o pinhal para o mar
e cobrem-se as costas de fortes e muralhas

nas marés agitam-se lendas de medos e de deuses

lá dentro pinta-se um povo com três traços
de saudade
a negro
de esperança
a verde
de criatividade
a vermelho
de muitos ventos e povos

ao anoitecer escolhem-se homens que sonhem
as lendas das marés e as iluminem
com a sua loucura

no mar erguem-se velas com palavras antigas
mãe
pátria
fortuna

nas tempestades encandeia-se a miséria de dentro
e acena-se com a bandeira à saída...


PM

domingo, 8 de setembro de 2013

quando nos defraudamos




sai-nos a palavra que defrauda o ser.
e fica-nos um aviso.
um sítio de desconforto.
um sítio a evitar.
um ar rarefeito de nós.
deserto na boca. areia a picar na pele.
mais um sítio a recomendar silêncio?
no ser a necessidade de repôr-se.
atar o antes e depois da fraude.
extinguir o sentido da palavra falsa.
e esperar que se perceba que o momento não foi nosso até ao osso.

PM

sábado, 7 de setembro de 2013

Tão pouca é a vida

 



Tão pouca é a vida,
o deslumbrado delírio da vida.

No tear se tecem os fios, o desenho das rendas,a
renda dos dias.
Ignoro quantos,
quantas tardes no fluir da paixão, quanto ouro e
azul na idade das mãos,
que idade no tear das mães.

Foram belas também no sonho antigo,
passearam entre os lírios,
desatavam a cabeleira e os vestidos,
iam à beira mar.



José Agostinho Baptista
Morrer no Sul
Assírio & Alvim, 1981



sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Eu tive uma amiga



Eu tive uma amiga.
via  num janeiro, numa cidade fria.
não sei se ela me lembra.
eu lembro-me dela e das fugas da circunstância...
Lembro da tangerineira, que nos amava,
a fazer de conta que as tangerinas tinham o mesmo fogo para todos os olhos,
e dos risos que partilhámos com a cave da casa,
e da roupa que lavámos com as mágoas das paixões primaveris
e dos almoços de domingo onde comiamos requeijão com diospiro e o Zeca à sobremesa,
e dos futuros que inventamos debaixo da tangerineira,
e da prata que espalhámos no céu, naquela madrugada de Fevereiro, quando as cerejeiras floriram
e de como o nosso peito era um catavento que só captava tempestades.

Eu tive uma amiga.

PM

acaso


Ainda que algum de vocês tenha vindo aqui hoje por acaso, não faz mal nenhum, é isto o que faz as pessoas - ter a certeza do acaso.

Almade Negreiros.


O acaso é a lógica de Deus.

Otto Walter Friedrich

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Mulheres...



Uma mulher é mãe ou é sexo ou é homem.
Quando um homem como um poeta pensa numa fêmea está a pensar numa dessas três.
(...)
Não basta sair das mulheres para saber delas, nem mesmo entrar-lhes no corpo. Pode um homem entrar numa mulher sem nunca chegar a conhecê-la, para isso é preciso muito tempo e um desejo que não se apague com o dia.
Cada mulher é uma soma de parcelas sem conta, uma por cada homem passado, por cada homem querido, por cada dor, por cada filho.
Há partes que dormem até que um toque as estremeça, outras que ardem num fogo autónomo, sem que nada o alimente.
Há mulheres tabuleiro, jogos de combinações infinitas onde nenhuma estratégia garante a vitória. Jogos de toda a vida até que alguém se renda ou a luz se apague.
(...)
As mulheres belas podem ser becos e as feias também.
Ruas estreitas por onde enfiar sob o risco de não sair nunca, porque as mulheres não se acabam. Todas as mulheres são autoras discretas, responsáveis por maridos, filhos, amigos e solitários.


Nuno Camarneiro
No meu peito não cabem pássaros
D. Quixote.

sem outro intuito


Atirávamos pedras à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado na nossa própria carne,
envolto por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam sem outro intuito
além do de extraírem às águas o silêncio que as unia.


Luís Miguel Nava
Vulcão I
Poesia Completa 1979-1994

terça-feira, 3 de setembro de 2013

oceano atlântico





Este azul é cor de sítio nenhum.
Um lugar que foge aos sentidos por medo e finitude.
Olha-se como não vendo, porque é tanto que não cabe em gente.
Chamar-lhe mar ou chamar-lhe céu, chamar nomes às coisas que riem de nós e de deus.
O mar inventou-nos a nós e depois a deus.

Nuno Camarneiro
No meu peito não cabem pássaros
D. Quixote.

Dormir um pouco...




Dormir um pouco — um minuto,
um século. Acordar
na crista
duma onda, ser
o lastro de espuma
que há no sono
das algas. Ou
ser apenas
a maré, que sempre
volta
para dizer: eu não morri, eu sou
a borboleta
do vento, a flor
incandescente destas águas.


Albano Martins, in "Castália e Outros Poemas"

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

o mar é um santuário




o mar é um santuário
o seu marulhar uma oração
o nosso silêncio outra.

PM

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

o riso do vento


agitam-se na brisa como guizos
as folhas do álamo negro
verde escuro
verde claro
coração de travessura.

no folheado de verde luz
estraleja
o riso alegre do vento

PM

segunda-feira, 29 de julho de 2013

invenções




No verão fazemos espigas de amor maduras.
PM

sábado, 13 de julho de 2013

mães



As mães ajoelham frente à dor
e sangram dos joelhos por toda a eternidade.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

nos olhos a saudade



Na minha aldeia há andorinhas que brincam
de vôo baixo
em tardes secas e sanguíneas.

Na minha aldeia há uma luz inesquecível
que é alegria na primeira idade
e consolo de cores nas folhas outonais.

Na minha aldeia há um rio de água lavada
nos açudes
pelas lavadeiras da memória.

Vou partir
levo no rosto luz
nos olhos água lavada
e disfarçados nos bolsos os ninhos das andorinhas
para que à noite
após o último vôo
não sintam saudades dos beirais.

PM

S/ título


procuro-te incansavelmente
como O Deus prometido
nas pedras
nos pássaros
no azul
nas estrelas
no livro fechado
no amigo recente.

Estou com os olhos pregados no horizonte
aproxima-se o pôr do sol derradeiro
espero
tudo compreender
como O Deus cumprido
e então não mais falarei
porque nada haverá para contar.


silencío
a súplica que há na fé.

PM

quinta-feira, 11 de julho de 2013

descobrir


Menino e pássaro - Simone Martins


O menino irritado gritava
- cala-te ó piça!
- cala-te ó piça!
- cala-te ó piça!

A menina/mulher
- então!?

silêncio...

agora já podes descobrir
palavras inocentes
como mãe, água, sol.

divertidas
como baloiço, bola, recreio.

palavras que fogem
como pássaro, vento, mar.

e mais tarde
palavras alegres
como festa, riso, cumplicidade.

ainda mais tarde
mas logo de seguida
palavras quentes
como pele, língua, lambe rosa.

e palavras dolorosas
como paixão, culpa, partir.

e só quando indispensável
palavras obscenas
como oportunista, poder, violência...

e nunca
palavras malditas
como ditadura, violação, escravatura...

PM

quarta-feira, 10 de julho de 2013

treinar os silêncios



Hoje espero-te
há muitas horas
podia dizer-se que estou a caminhar por dentro da tua ausência.
os transeuntes que passam
vêm a minha fé
e pensam em dar-me palavras
para escrever uma carta de amor.
uma carta onde veja as tuas asas
quando te incendeias na madrugada
ou em que visto as tuas pernas
e ardo nas tuas veias.
Mas, os transeuntes não sabem
que as palavras são uma coisa
e uma carta de amor outra
e só a labareda no coração
as pode ligar.

Hoje a tua ausência aconselha-me
a escrever cartas de amor sem destinatário
para treinar os silêncios
com que te hei-de amar.

PM