segunda-feira, 31 de março de 2014

Inesperadamente...



 
 
«Ai, Gasosas, que me mataste!»- uma exclamação dirigida ao recorrente, que é conhecido por aquela alcunha, e que, naquele lance supremo, denuncia um espanto - um espanto desesperado em face da morte iminente, sem dúvida -, mas também a decepção trágica ante o irremediável da morte provocada por um amigo. Há qualquer coisa de irresistivelmente tocante nessa exclamação extrema, que, no seu trágico, tem ainda o rasto expansivo da afectividade, sobrevivendo ao acto ruptural da vida que acabara de ser cometido. Como se a vítima apelasse ainda, no derradeiro momento, para a amizade do amigo, que acabara de cometer esse acto brutal, porventura sem ter medido as consequências do seu acto, essa «brincadeira» arriscada.
 
Rodrigues da Costa
in Ac. do STJ de 30.10.2003

domingo, 30 de março de 2014

Madrugada




Foto da autora

Um leve tremor precede a madrugada
Quando mar e céu na mesma cor azulam
E são mais claras as luzes dos barcos pescadores
E para além de insânias e rumores
A nossa vida se vê extasiada.

Sophia de Mello Breyner

sábado, 29 de março de 2014

LISBOA




Lisboa tem um vestido azul feito de
mar e guerra.
E cheira a laranjas maduras.
Quando as gaivotas trazem no bico
os primeiros pedaços de sol para acender o dia,
Lisboa deixa correr os cabelos pelo Tejo
e o povo pelas ruas.
À mesma hora, a coragem agita no sangue
duas grandes asas inquietas.
Por todas as janelas destruídas, já o mar entrou,
derrubando acácias,
cantando hinos de espuma
E porque toda a coragem é necessária,
toda a esperança é legítima.

Joaquim Pessoa

 
 
Se pensarmos nos Jacarandás floridos, na sua dança aérea e azul, Lisboa parece estes dias uma composição sonhada por Chagal ou Matisse.
Lisboa deve às árvores de que se esquece, uma parte eloquente da sua beleza. Elas guardam, para nós, a cor, o alfabeto vegetal do silêncio, o atalho secreto da alegria.


José Tolentino   
 
 
 
 
LISBOA
 
Corpo de velas enamoradas do vento
Alma de ópera bufa com sabor a fado
Sobre as janelas floridas dança uma luz de ouro e encantamento
Crescem marinheiros azuis com cheiro a sal e intriga
Entretanto chega a noite fresca como seda.

PM


quinta-feira, 27 de março de 2014

quando a ave disser o teu nome...





Aproximava-se a linha mais certa da vida, quando ela chegou.
Ela tinha medo que o medo dele fosse insuportável.
Toda a dor que ele pudesse ter, agora, naquela fragilidade, era um inferno nela.
Foi quando ela se lembrou da imagem das margens ou das fronteiras.
- Lembras-te quando foste a salto para França, e o "passador" ameaçou deixar-te no meio dos Pirenéus sozinho?
Ele respondeu-lhe: que aves voam do outro lado? Como vou saber que é Primavera?
Ela. Talvez quando o vento florir a pedra. Ou, a ave que nunca viste disser o teu nome.
 
PM
 
 
 
 

As tuas pegadas, o caminho!




Caminante, son tus huellas
el camino y nada más;
Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace el camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante no hay camino
sino estelas en la mar

António Machado:

terça-feira, 25 de março de 2014

A errar crescemos...



 
 
 
 
O importante não é ser perfeito, mas sim inteiro.
 Jung.


Errar, errar de novo, errar melhor.
Samuel Beckett




 

quinta-feira, 20 de março de 2014

Partilhar...






A despedida talvez seja a parte mais difícil da esperança.


Talvez o que de mais significativo somos capazes de partilhar não encontra no mundo linguagem melhor do que o silêncio.


José Tolentino Mendonça.
O Hipopótamo de Deus

domingo, 16 de março de 2014

O Nelson





É sempre no parque de estacionamento do supermercado que encontro o Nelson.
Ele aproxima-se de mim sorrateiro enquanto meto as compras na mala.
E faz-me sempre a mesma pergunta para a qual sabe de antemão a resposta.
A senhora quer comprar curitas?
Embora a pergunta já venha embrulhada num tom de desculpa e tenha o
significado: desculpe mas é só para meter conversa...
Eu ponho o sorriso mais afectuoso que tenho.
E digo-lhe, sobre a pergunta já sabes a resposta.
E enquanto procuro nas compras algo que ele goste, vou-lhe puxando o ego para cima.
Então, cá está o Nelson um rapaz bem comportado!
E ele responde-me timidamente: tem de ser.
O Nelson deve ter agora 17 ou 18 anos. Eu conheço-o desde que ele tinha três ou quatro e tocava harmónica, sentado no corredor friorento do supermercado, com um boné no chão à frente das suas pernas de chinês.
Nessa época eu ia sempre ao supermercado ao Sábado de manhã e já fazia compras específicas para ele. Bananas, yogurtes, bolachas, até cheguei a comprar-lhe uma colher para ele comer os yogurtes.
Mas a minha coroa de glória veio um dia, quando ele tinha 12 ou 13 anos .
Eu tinha estado sem o ver um período longo, um ano ou mais.
E perguntei-lhe se podia continuar a dar-lhe comida.
E ele respondeu-me, para mim até é melhor, para os meus pais é que não.
Ultimamente, quando ele se aproxima fazemos de conta que é uma festa. Onde eu sou uma anfitriã alegre  e carinhosa e ele o convidado, com direito a escolher de entre várias coisas duas ou três delas.
Gosto de pensar, enquanto ele se afasta naquele andar petulante de rapaz de etnia cigana, que posso fazer a diferença e evitar que ele se torne num segundo Agostinho.
O mundo já tem tantos Agostinhos. E eu estou tão cansada deles.
Ou melhor, estou tão cansada de fazer o meu melhor para lhe ver a pessoa toda e não só a "pobre" atitude.

PM

quinta-feira, 13 de março de 2014

Cremilde's





Foi quando dobrei a esquina que deparei com a Cremilde, vestida de domingo e a falar com as árvores da praça. Sim!
Não numa atitude poética e sigilosa mas como se a natureza a tivesse dotado de meios para ter uma conversa tu-cá, tu-lá com as árvores.
Num momento tudo se tornou claro, o sofrimento deixou de caber dentro e passou para fora escancarado e trocista. O passado saltou para o presente sem barreiras, num teatro íntimo só com um actor e as árvores, protagonistas inconscientes mas, fiéis à intimidade e às personalidades que encarnavam estáticas, o Porfírio, a Florbela, o patrão, o padre, o bebé e tudo o que nunca devia ter acontecido...
Tudo a fazer sentido a quem lhe conhecesse a vida.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Quarta feira de cinzas

 
Não temo o fogo que me adverte com suas chamas,
mas livrai-me da brasa moribunda que
se esconde sobre as cinzas.

Rabindranath Tagore.